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Ñawi: arte diseño comunicación

versión On-line ISSN 2588-0934versión impresa ISSN 2528-7966

Ñawi vol.7 no.2 Guayaquil jul./dic. 2023

https://doi.org/10.37785/nw.v7n2.a3 

Artigos originais

Travessia. A fabulação audiovisual de uma sujeita malunga

Travessia. The audiovisual fabulation of a malunga being

Letícia Castro Simões1 
http://orcid.org/0000-0002-3315-5135

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. leticia.c.simoes@gmail.com


RESUMO:

O presente artigo deseja se debruçar sobre o cur- ta-metragem Travessia, da cineasta baiana Safira Moreira, para analisar a operação audiovisual em torno da construção de um sujeito rizomático, con- ceito proposto pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, em ressonância com um sujeito malungo, conceito histórico aqui trazido pelo historiador João José Reis. A construção desse sujeito múltiplo em subjetividade e historicidade, segundo esta análi- se, poderia ser observada a partir do exercício de fabulação de si exercido pelo sujeito narrador do curta-metragem. Assim, esse texto deseja responder à seguinte pergunta: poderia a escrita audiovisual realizar a escrita de um sujeito múltiplo, partido em muitos, formado por milhares?

Palavras chave: fabulação de si; filme curto; narrativa documental; sujeito

ABSTRACT:

This article debates the short film Travessia, by Bahian filmmaker Safira Moreira, and aims to analyze the audiovisual operation around the construction of a rhizomatic subject, a concept proposed by philoso- phers Gilles Deleuze and Félix Guattari, in resonance with a malungo subject, a historical concept brought here by historian João José Reis. The construction of this multiple being in subjectivity and historicity, according to this analysis, could be observed from the exercise of self-fabulation exercised by the narrator of the short film. Thus, this text seeks to answer the following question: could the audiovisual writing carry out the writing of a multiple subject, divided into many, formed by thousands?

Keywords: self fabulation; short film; documentary narrative; being

1. INTRODUÇÃO

Em abril de 2021, foi realizada on-line a mostra “Cinema brasileiro: Anos 2010, 10 olhares”1, onde dez curadores de atuação nacional e internacional foram convidados a escolherem, cada um, quatro longas-metragens e quatro curtas-metragens realizados no Brasil entre 2010 e 2019 para pensar imagens e ressonâncias do Brasil contemporâneo. Janaína Oliveira, pesquisadora, historiadora e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (NEABI) do Instituto Federal do Rio de Janeiro, cunhou a sua escolha sob uma seção intitulada “Cotidiano Singular”. Para Janaína,

fato é que na última década o cenário da produção de filmes brasileiros presenciou não só a emergência de outros sujeites contando suas histórias, como também de outras curadores e curadores articulando propostas que mostram essas histórias. Nesses deslocamentos de significados entre centros e margens que essa emergência propicia, assistimos obras que rompem, de formas diversas, com expectativas de representações já cristalizadas culturalmente em nosso imaginário. São filmes que exploram outros repertórios de imagens, outras paisagens, consolidando outras possibilidades de presença no cinema (Oliveira, 2021, 61).

Como realizadora audiovisual, a questão me é muito cara, uma vez que lido constantemente com esse dilema a cada nova proposta de filme documental: como pensar a representação dos sujeitos em um mundo que explora à exaustão a construção da identidade e as relações entre os indivíduos; um mundo onde a investigação cotidiana da intimidade se tornou um produto capitalista midiático, e a forma documental, se espraiando entre filmes, realities shows, programas jornalísticos, blogs, redes sociais, se mostra um ponto crucial nessa articulação.

1.1 Descrição do objeto de estudo

Contudo, neste artigo, preciso me despir do meu paletó enquanto documentarista para vestir a roupa de pesquisadora em Comunicação; por tanto, apesar de uma obra minha2 estar presente na referida mostra, preferi centrar este texto na análise do curta-metragem Travessia, realizado pela diretora baiana Safira Moreira, e que integra a seção “Desaguar em cinema: retomar territórios invadidos”, organizada pela curadoria do festival Cachoeira DOC3. No texto de apresentação dos filmes que compõe a referida seção da mostra, Travessia foi apontado como uma obra cinematográfica que se insere na ideia de grupos marginais retomarem, através do audiovisual, uma certa autonomia sobre a própria narrativa, sobre a própria história, sobre a própria corporalidade. Esta proposta, para o grupo curatorial do Cachoeira DOC, se encontra presente na produção brasileira contemporânea dos últimos anos.

Se unirmos o discurso de Janaína Oliveira ao do Cachoeira DOC para a seleção de seus filmes, poderíamos situar Travessia tanto no panorama de filmes que se utilizam da própria história para romper com a cristalização de determinadas expectativas sobre determinados personagens como também no outro panorama, o de filmes brasileiros que se insurgem “contra a Nação”, como o Cachoeira DOC assim escreve, ou seja, contra uma narrativa já sedimentada da história brasileira.

Assim, algo muito específico me chamou a atenção na realização de Travessia, e que se torna o motivo desse artigo: a construção do sujeito narrador, ou melhor, da sujeita-narradora (que, aliás, não se nomeia) neste filme, transitando entre a dimensão íntima e a histórica através do ato de fabular.

2. Base Teórica

Para a escrita desse texto, trago à discussão autores mais identificados com a Filosofia, a História do Brasil e as Ciências Sociais para propor respostas à provocação com que a pesquisadora de Comunicação Malena Contrera encerra seu livro Mediosfera: “Pensar o papel da comunicação e suas possibilidades como processo de resiliência para além da moldura capitalista e tecnocrática” (Contrera, 2010, 133-134); operação esta que identifico como uma consequência da construção fabular dessa sujeita narradora rizomática e malunga.

De Agamben, retomo a noção de “gesto” na arte contemporânea para analisar a operação cinematográfica que realiza Safira, afastando-se de uma narrativa clássica, com início, meio e fim, para propor uma operação de aproximação e rompimento do olhar, reconfigurando as possibilidades de uma documentarista na construção da própria história. Essa discussão se dá diante de um mundo desencantado, um no qual se vive sob um imaginário assolado pelas estratégias neoliberais do sistema capitalista, onde as estratégias midiáticas dominaram as estratégias de comunicação, confundindo os exercícios de expressão e construção de subjetividades com os de compra/venda de produtos.

Esta expressão, “desencantamento do mundo”, foi cunhada pelo sociólogo alemão Max Weber pela primeira vez no artigo “Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva”, de 1910 e debatida dez anos depois na segunda versão do livro A ética protestante e o espírito do capitalismo (2004). Em um resumo, para o sociólogo, nas sociedades modernas ocidentais, as ideias de mito e magia advindas de práticas ancestrais, habilidades empíricas e transmissão oral de conhecimento foram substituídas por uma noção de mundo construída pela ciência e pela tecnologia, ou seja, uma noção fundamentada na racionalidade como modo único de existência. Este processo de radicalidade da subjetividade racional, ancorado no modo de vida capitalista e de exaltação da sociedade do consumo, semeou o terreno para a morte do simbólico na sociedade ocidental contemporânea. Poderíamos dizer, até, que a operação de desencantamento do mundo em consonância com a fixação das estratégias capitalistas neoliberais tem como consequência direta a interferência nos processos psíquicos e inconscientes das pessoas em relação à criação de imagens.

Esse pensamento alinha-se diretamente com o processo da construção rizomática do sujeito, discutido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, onde o indivíduo é formado por uma teia infinita de relações que ora se aproximam, ora se afastam, mas nunca se constituem um ser uno. Esta ideia será fundamental para compreender a construção da narradora e o seu ato de fabular sobre a própria biografia (ou a falta dela, como veremos).

Com a agulha do sujeito rizomático, bordamos a ideia do tecido malungo, ou melhor dizendo, do sujeito malungo. Malungo significa “canoa”, na língua Banto, e é o termo designado na história para dar conta das operações simbólicas que aconteciam na travessia do navio negreiro, uma viagem violentíssima e demarcadora, para todo o sempre, dali em diante, da subjetividade e da corporalidade dos sujeitos que integravam este navio. Contudo, a ideia de malungo tem a ver com a cumplicidade entre essas almas traficadas; pessoas advindas de distintos contextos, que falavam diferentes línguas, que não comungavam dos mesmos rituais, mas que por vivenciar uma mesma experiência violenta, partilham, ao sair da travessia, uma outra identidade. Para diferentes historiadores, “malungo” é um termo que adquire diferentes visões, ora se mostrando como pacto simbólico, ora como operação de identidade entre pessoas. Neste artigo, tomamos a definição do historiador baiano João José Reis, que identifica o malungo como uma espécie de parentesco simbólico, provocado pela travessia do navio negreiro, visto por Reis como um ritual de iniciação.

Daí, decorre a pergunta principal deste artigo: poderia a escrita audiovisual realizar a escrita de um sujeito múltiplo, partido em muitos, formado por milhares, em um mundo onde a nossa imaginação está afetada por um incessante martelar midiático?

2.1 O gesto na história

O curta-metragem Travessia4 contém três sequências. Na primeira (Figura 1), a que abre o filme, vemos fragmentos de um corpo negro dispersos em uma fotografia. Pouco adiante entenderemos que se trata de uma imagem com a seguinte legenda: Tarcisinho e sua babá. Dias D’Ávila, 15-11-63, onde uma mulher negra segura um bebê branco.

A mulher negra olha para a lente, está enquadrada ao centro da imagem. Um aparente ambiente doméstico onde, ao fundo, há muros e o que aparenta ser a parte de uma casa. Ao redor dela, da babá, há plantas e um pequeno caminho. Dias D’Ávila está a 50km de Salvador e faz parte de sua região metropolitana; o município é conhecido pela qualidade de suas águas e, nesta época, década de 1960, era um lugar de veraneio da elite baiana. A legenda identifica o tempo, o espaço, o membro da família. Não, a mulher negra. Ela não pertence ao universo daquela fotografia; contudo, em Travessia, ela é o centro da imagem. A babá de Tarcisinho. A mulher a quem não foi concedido um nome nas marcas da história.

Figura 1 Stills da primeira sequência de Travessia, retirados do próprio filme pela autora (link do filme nas notas de rodapé). 

À medida em que atravessamos os fragmentos da fotografia de Tarcisinho e sua babá, ouvimos um poema de Conceição Evaristo, na voz da irmã da realizadora, a dançarina Inaê Moreira:

A voz da minha bisavó ecoou criança nos porões do navio / Ecoou lamentos de uma infância perdida / A voz da minha avó ecoou obediência / aos brancos, donos de tudo / A voz da minha mãe ecoou baixinho / revolta / No fundo das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado numa favela / A minha voz ainda ecoa versos perplexos / com rimas de sangue e fome / A voz da minha filha recorre todas as nossas vozes / recolhe em si as vozes mudas, caladas / engasgadas nas gargantas / A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato / O ontem, o hoje, o agora (Evaristo, 2008, 10-11).

Giorgio Agamben, em um diálogo bibliográfico póstumo com Michel Foucault5, retoma a ideia de gesto para pensar a literatura e a arte contemporâneas: um movimento que reside no terreno do entre. O que caracterizaria o gesto seria o direcionamento da vontade sem necessariamente a busca pela produção; o gesto é, ao mesmo tempo, potência e ato. Assim, “o lugar -ou melhor, o ter lugar- do poema não está, pois, nem no texto nem no autor ou no leitor: está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto, e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso” (Agamben, 2007, 53).

“O desencantamento do mundo” é uma expressão que se refere ao processo subjetivo operado pelo domínio da religião protestante no mundo ocidental seguido da fixação das práticas econômicas capitalistas, que gerou uma sociedade onde, no lugar do encantamento, se trouxe a concretude, no lugar do imaginário, se trouxe a matéria-prima. Os deuses não habitariam mais o mundo; o que há, hoje, é tudo aquilo que se pode tocar, produzir, delimitar. A natureza se torna um instrumento de saque e/ou de transformação a partir do momento em que ela não é mais um ente próprio, mas sim algo a ser utilizado pelo homem, o ser racional.

O processo de racionalização teria excluído tudo aquilo que não podemos ver, tocar, provar. A literalidade teria se tornado a morte da dimensão simbólica. Sem a capacidade de imaginar, de transgredir aquilo que está diante dos nossos olhos, digamos, a capacidade criativa humana se debilita e, em consequência, sua habilidade de pensar e agir em conjunto. Para Max Weber, a operação de “desencantamento do mundo” provocou um desencantamento da natureza, dos corpos, dos deuses a fim de empoderar o pensamento único, a monocultura, o capitalismo, enfim; e toda esta operação parecer natural.

Diante deste mundo desencantado, guiado pela lógica severa da razão e do consumo -só acredito naquilo que posso tocar, só me é caro aquilo que tem um valor material, só me torno passível de subjetividade quando sou reconhecido pela máquina midiática-, Giorgio Agamben procura formas de resistência. Para o teórico da Filosofia Selvino J. Assman, na introdução de “Profanações”, essa procura residiria “na busca da infância, na nossa capacidade de amar e jogar, de viver na intimidade de um ser estranho, não para fazê-lo conhecido e sim para estar ao lado dele sem medo de ficar entre o dizível e o indizível” (Agamben, 2007, 07).

Podemos ler na primeira operação de Travessia, esta tarefa de empurrar as meras fronteiras do visível, do dado, do colocado. Aqui, como uma carta de intenção, o filme nos apresenta o seu contexto, o seu cenário, mas também o gesto de jogo da autora: uma pesquisa na história através da imagem que deseja se debruçar sobre quem está à margem. O centro da história é quem nunca ali esteve.

Um gesto que não vai ressarcir o nome, a história, a trajetória, a sensibilidade à mulher negra da fotografia -sua chave de reconhecimento é sua profissão, sua atuação no mundo do trabalho-, mas a identifica com as mulheres negras que constituem tanto o filme, quanto o público do filme, quanto aquelas que vieram antes da realizadora e das eventuais famílias de quem assistir ao curta-metragem. Safira opera um gesto de escrever na história a imagem dessa mulher, a quem lhe foi negado o mínimo: um nome. Travessia nos convoca a olhar seus olhos, seu corpo, seu movimento de carregar o garoto frisado pelo ato fotográfico, e nos pôr em relação a essa estranha, que nos torna parte de nós, como bisavó, como avó, como mãe, como voz, como nos diz o poema de Evaristo.

Agamben conclui seu texto com uma suposição: “A história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos” (Agamben, 2007, 53). No começo de Travessia, somos convocados, através do gesto cinematográfico de Safira, a fazer parte desta batalha, atravessando uma suposta fotografia íntima para, através dos reenquadramentos propostos e da montagem justaposta ao poema de Evaristo, interpretado por Inaê Moreira, nos reencontrarmos do outro lado da imagem, num jogo de afetos, onde uma imagem consegue ser maior do que a morte. E, ao criar uma passagem entre algo que fora -o momento vivido da fotografia- com a sua ressignificação no presente -através do cinema-, a narradora apresenta sua primeira face, a da atuação no tempo. Este é um filme de alguém que deseja que uma mesma imagem coexista em várias camadas do tempo presente. Mas quem é esta narradora?

2.2 Sujeita-Espada-de-são-jorge

A segunda sequência de Travessia (Figura 2) se inicia em preto, onde ouvimos a voz da mãe da realizadora, Angélica Moreira, contando sobre as parcas fotografias que existem em sua família; na verdade, sua recordação trata de um casamento, uma ocasião ritualística que demandava esse tipo de gasto financeiro (no filme, dona Angélica justifica que o acesso às fotografias demandava um alto custo, impossível para famílias negras, a não ser em ocasiões muito específicas). A existência em imagens era algo inacessível para as famílias negras.

Enquanto ouvimos a voz de Angélica discorrer sobre as outras ocasiões em que se recorda de haver sido fotografada, a também realizadora negra Tuanny Medeiros aparece exibindo fotografias caseiras de outras famílias negras. Importante ressaltar que tanto a fotografia inicial do filme quanto as exibidas por Tuanny foram encontradas por Safira Moreira na feira da Glória6, no Rio de Janeiro, não fazendo parte, a princípio, da família de Moreira nem da de Medeiros.

Nesse momento, é preciso olhar para como se estrutura a figura da narradora de Travessia, o sujeito Safira Moreira. A princípio, não possuímos qualquer informação sobre ela: seu emaranhado identitário se tece através da voz de sua irmã, do relato de sua mãe, do rosto de sua amiga, da fotografia entrecortada da babá de Tarcisinho. Safira, a narradora, é várias; ela se constitui das várias vozes femininas que habitam o seu olhar. Vozes que habitam um passado (a fotografia inicial), vozes que rememoram um passado (o discurso de dona Angélica), vozes que partem da memória para fabular o futuro.

Em 1985, no texto “A literatura e a vida”, presente em seu último livro Crítica e Clínica”, Gilles Deleuze assim discute sobre o fabular: “A literatura é delírio e seu destino se decide entre dois pólos do delírio. (...) A medida da saúde é quando invoca uma raça bastarda e oprimida para resistir a tudo que a esmaga e abrir um sulco na literatura” (Deleuze, 1997, 15).

No pensamento filosófico pós-estruturalista, o indivíduo não é uma coisa fechada; ele é, na verdade, um emaranhado de coisas. O indivíduo é o resultado desse emaranhado, desse rizoma. O termo foi cunhado pelos filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995) no livro Mil Platôs e parte da biologia para pensar a forma como as realidades são produzidas. Um rizoma é um mapa de relações imprevistas, forjadas a todo o momento, uma vez que o homem é um ser social, que está a todo o tempo se relacionando com coisas, seres, objetos. É esse mapa, esse rizoma, que constitui o indivíduo. Cada um de nós é uma multiplicidade de elementos heterogêneos que funcionam em simbiose. Deleuze e Guattari se fazem estas perguntas: quais foram as coisas que se juntaram, sob qual regime, para produzir o mundo em que vivemos? Se temos a possibilidade de viver em qualquer outro mundo, por que vivemos neste aqui? Ou seja, se não mapeamos os rizomas do poder, dos estados, das instituições, das relações, não saberemos por onde começar a construir um outro mundo. E é preciso crer no mundo, neste mundo. Crer que este mundo existe e que pode vir a ser outra coisa.

Figura 2 Stills da segunda sequência de Travessia, retirados do próprio filme pela autora (link do filme nas notas de rodapé). 

O sujeito narrador empunhado por Safira em Travessia é um sujeito rizomático, uma sujeita-espada- de-são-jorge, por assim dizer. Trago a imagem da planta Dracaena trifasciata por ser uma cujo caule desenvolve uma superfície diferente do caule da árvore, de raiz fixa e centrada. A espada-de-são-jorge também tem parentes muitos próximos, semelhantes, como a espada-de-santa-bárbara ou a lança- de-são-jorge, mas que carregam leves diferenças, perceptíveis somente nos detalhes. Caminhos em um rizoma. Se através do gesto cinematográfico, Safira inscreveu a imagem da babá de Tarcisinho na história, criando uma memória compartilhada sobre aquela fotografia em junção com o poema, ao invocar o relato memorialístico de sua mãe sobre a falta da memória impressa, a memória retratada, Safira também se afirma como um ser em busca da própria recordação. A memória é uma construção coletiva: ninguém lembra de nada sozinho.

Contudo, a memória, em Travessia, não é invocada como algo estanque e referido ao tempo passado; mas, sim, como um trampolim para uma fabulação sobre o futuro. A narradora deste filme abdica de uma posição de sujeito único, tão característica dos nossos tempos de pouco diálogo, infinitos monólogos e uma profusão de self-made mans e womans, para consagrar a partilha, e traçar uma linha com a sua mãe e irmã que avança até rostos e identidades desconhecidas, mas que compartilham a mesma falta de memória. Afinal, suas fotografias, seus registros, suas memórias foram tidas como desimportantes e colocadas à disposição em feiras de rua. A sujeita-narradora fabula que o seu si é, também, outras.

Tampouco devemos nos posicionar de forma ingênua diante do titulo: Travessia. Para o historiador João Reis, pesquisador renomado por sua dedicação à investigação sobre o tráfico negreiro no Brasil: “A travessia é como um ritual de iniciação. O sujeito deixa de ser cativo para ser escravo. Os ritos de iniciação sempre envolvem a dor. Não há dor maior que a travessia do Atlântico. Esse sofrimento criava esse laço entre as pessoas” (Reis, 2021, 02:44).

Essas pessoas, que faziam a viagem no mesmo barco, criavam uma espécie de parentesco simbólico fortíssimo: o malungo. Mais tarde, na linguagem oral brasileira, o termo malungo vai ser sinônimo de compadre, amigo, irmão; uma palavra que designa uma ligação afetuosa. Mas em termos históricos, a operação do malungo fazia de sujeitos que antes tinham suas próprias folhagens se ramificarem com outros sujeitos, outras espécies de plantas, criando uma terceira coisa, compartilhada entre ambos. Uma constante re-visão das relações através do enfrentamento das diferenças; novos sujeitos se criam nessa necessidade de sobrevivência -ou seja, imposição da relação- existente na travessia. E a esse ato de criação simbólica, deu-se o nome de Malungo.

Questionar as estruturas de poder existentes na produção da memória fotográfica das famílias negras se torna uma questão do cinema; de mãos dadas com outras famílias, a realizadora se coloca, também, como resultado desse rizoma de circunstâncias. Uma sujeita-espada-de-são-jorge, uma sujeita malunga. (Teria seu interesse pela fotografia partido justamente do fato de não conhecer os rostos de seus antepassados?). Travessia, enquanto curta-metragem, poderia se encerrar na denúncia dessas estruturas de apagamento da memória. Mas o filme realiza mais um movimento, e dessa vez, na direção da retomada do próprio corpo, da própria história, da própria memória.

2.3 Enfrentar a morte

Na terceira e última sequência de Travessia (Figuras 3, 4 y 5), corpos negros performatizam para a câmera, que os fotografa, em um ambiente aberto, cercado por natureza. A primeira fotografada é a própria Tuanny Medeiros que, em seguida, dá lugar a um casal, depois a um casal com filho, a famílias negras, enfim. Há aqui, claramente, o gesto da inscrição dessa sujeita-árvore em uma estratégia de recuperação da memória, uma retomada da imagem com uma finalidade de culto ou de rito; em suma, a imagem como uma forma humana para driblar o medo da morte.

Esse entendimento para a tão humana atividade de produzir e consumir imagens passaria, para o antropólogo Edgar Morin (2000), pela “busca constante de enfrentamento da morte, fonte de libertação e de angústia, cerne de nosso pavor e de nossa potência”, no entendimento da pesquisadora em imaginário Rosa de Melo Rocha. O processo de construção das imagens, na visão de Morin, passaria pelo desejo de “enterrar, adornar e representar” (Rocha, 2013, 75) os mortos, culminando, assim, na superação deste evento terrível e inevitável, a morte.

No nosso mundo capitalista neoliberal, onde as imagens foram esvaziadas de sentido e deixadas somente à exaustão do consumo, tornando-se objetos vazios e dando espaço ao endeusamento da matéria -ou, em alguns casos, de um discurso-, a dimensão simbólica da imagem foi substituída pela dimensão estética. Como consequência, se vive o esmaecimento da consciência processual no que toca à relação entre os homens e as imagens, a consciência entre vida e morte, mediada pelo tempo. O homem contemporâneo foi engolido pelo mercado, e sem o seu recurso imaginativo, advindo do imaginário, perde a capacidade transgressora, criadora, mobilizadora. Resistir a quê, se estamos ocupando consumindo e nos vendendo?

Figura 3 Stills da terceira sequência de Travessia, retirados do próprio filme pela autora (link do filme nas notas de rodapé). 

Figura 4 Outros stills da terceira sequência de Travessia, retirados do próprio filme pela autora (link do filme nas notas de rodapé). 

Figura 5 Mais stills da terceira sequência de Travessia, retirados do próprio filme pela autora (link do filme nas notas de rodapé). 

A última sequência de Travessia articula um retorno da imagem ao seu lugar ritualístico, como objeto criado pelo homem capaz de deter a morte. A estas famílias negras, que tiveram o seu lugar da imagem de culto roubado por uma estrutura econômica e política, são inventadas imagens. Imagens- retrato, para serem penduradas no meio da sala, posadas, performatizadas, e que não foram produzidas pelas estratégias midiáticas das redes sociais e dos perfis de Instagram a fim de conquistar milhares de seguidores. Não são imagens que foram criadas pelo domínio do mercado mas, talvez, como uma resistência às suas artimanhas.

Quando pensamos no Brasil atual, onde 75,7% das vítimas de homicídio são negras, segundo o Atlas da Violência7, onde a taxa de homicídios das mulheres negras é 5,2 para cada 100 mil (para não negras, o dado é de 2,8 por 100.000) e onde a morte de Kathelen Romeu, jovem modelo negra, grávida de 14 semanas, no Rio de Janeiro, foi utilizada como cupom de venda de uma loja de roupas8, o gesto de retomada da produção de imagens em relação às instâncias de vida e morte, tempo e memória, sujeito e coletivo por uma realizadora de audiovisual é algo a ser olhado como interesse. Não se trata de uma operação de re-encantamento do mundo, como já se cogitou; mas, talvez, enxergar brechas de resistência do imaginário dentro de um mundo desencantado.

3. CONCLUSÃO

Vivemos em um mundo de imagens que nos entorpecem ao mesmo tempo em que nos sufocam; imagens estas, muitas vezes, produzidas por nós mesmos, dentro de uma lógica capitalista e midiática onde o indivíduo que se destaca é aquele que melhor se vende e vende suas ideias. O íntimo, o doméstico, o familiar foi a última fronteira capitaneada pela lógica econômica, criando uma disputa semiótica no terreno da comunicação. Ainda seria possível criar imagens que compreenda sua historicidade, que não negue seu valor antropológico, que dialogue mais com os deuses do que com os lucros?

Acredito que sim. Ainda que a tarefa seja árdua, por estarmos imersos neste mundo, ou seja, por sermos seres desencantados, ela não é inócua. Para tanto, trouxe como objeto de análise o curta-metragem Travessia, primeira obra da realizadora Safira Moreira. Nele, Safira opera, através de articulações narrativas da linguagem cinematográfica, uma retomada da fabulação da memória, não somente a sua, mas de um coletivo, as subjetividades brasileiras negras. O cinema encarado como um gesto de fabulação, de resistência através das relações e que contém uma retomada, uma talvez busca por emancipação simbólica.

Acredito que a obra de Safira, ao propor um outro olhar à foto de Tarcisinho e sua babá, para além do objeto, mas às fissuras deste objeto, ao se encarar como uma sujeita múltipla, feita da multiplicidade de relações anteriores -e, por que não, posteriores-, assim sendo, rizomática, mas também malunga, por se inserir cinematograficamente em um pacto simbólico de resistência, onde diferentes identidades (a da babá, a de Conceição Evaristo, a de dona Angélica, a das famílias fotografadas) se amalgamam na sujeita narradora que fabula sobre elas, tornando-se uma só e também várias.

Uma sujeita narradora que se espraia por seus familiares, mas também por suas amigas e até por pessoas desconhecidas, como os estranhos que habitam as fotos colecionadas em feiras de rua, e por fim, ao encerrar o filme com um gesto propositivo e performático, de fazer retratos familiares destas famílias no tempo presente, busca retomar, no cinema, a ideia da imagem como substância de culto, entendendo-a em sua historicidade e dimensão antropológica.

O imaginário é um lugar de resistência política e existencial. Nós somos seres criadores e devotos das imagens; elas podem ser nosso lugar de resistência ou de atropelamento. O que vivemos, hoje, é uma crise de sentido, onde há uma saturação da informação e uma exploração da imagem individual. Somos produtores da nossa própria tragédia, e não nos damos conta disso, já que, logo ao lado, há um mais um espaço onde a minha tragédia pode resplandecer, adquirir alguns minutos de atenção. O que filmes como Travessia nos trazem -e a mostra “Cinema brasileiro: Anos 2010, 10 olhares” trouxe outros exemplos de filmes que estabelecem conexões parecidas, ainda que por caminhos distintos- é a disputa dessas imagens; uma disputa que merece a atenção dos estudos de Comunicação. Estas investigações não se encerram aqui.

Referências bibliográficas

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Weber, M. (2004): A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]

1A mostra aconteceu entre 22 e 30 de abril, tendo sido inteiramente realizada através do site www.10olhares. com, de forma gratuita. Ela é o “terceiro capítulo de um movimento iniciado em 2001 e que se renovou em 2011”, nas palavras do seu idealizador Eduardo Valente, publicadas no texto de apresentação do catálogo. Em resumo, a mostra se propõe a apresentar os filmes brasileiros mais emblemáticos da década anterior, tendo como critérios, por um lado, a multiplicidade de caminhos narrativos e, por outro, as distintas linhas de força no tocante à produção.

2O longa-metragem “Casa”, realizado em 2019.

3Festival realizado há dez anos na cidade baiana de Cachoeira e ligado à Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Nos últimos anos, tanto o festival quanto os filmes e textos saídos do curso de Cinema da UFRB, têm ganhado relevância por priorizar novos atores da realização cinematográfica, focando na realização negra, indígena e periférica; e, no campo da crítica, promover uma articulação entre o olhar narrativo e a atuação política.

4Curta-metragem disponível na íntegra e gratuitamente, com legendas em inglês, no link: https://vimeo. com/236284204. Acessado em 14 de julho de 2021.

5Na conferência “O Autor Como Gesto”, publicada em 2007, Agamben discute diretamente com a conferência “O que é um autor?”, proferida por Foucault em 22 de fevereiro de 1969.

6As feiras da Glória, assim como a feira do Paço XV, acontecem aos fins-de-semana e são conhecidas por venderem antiguidades usadas. Há oferta de livros, pequenos apetrechos domésticos, roupas, enfim. As bancas com álbuns de fotografias domésticas se popularizam entre os cineastas nas últimas décadas. Outro exemplo do ato de colecionar imagens íntimas descartadas e vendidas em punhados nas feiras de rua está no documentarista argentino Andrés Di Tella que, a cada viagem, faz questão de trazer o seu punhado de imagens familiares desconhecidas. Com este material, ele já realizou exposições e curtas-metragens.

7Levantamento feito pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério da Economia e divulgado on-line em 27 de agosto de 2020.

8“Loja Farm cria cupom com nome de Kathlen e é acusada nas redes de lucrar com morte de mulher grávida”, reportagem da Revista Fórum, publicada on-line em 09 de junho de 2021.

Recebido: 19 de Julho de 2022; Aceito: 28 de Setembro de 2022

Letícia Castro Simões é cineasta, escritora e pesquisadora. Mestre em Cine-Ensayo pela Escuela Internacional de Cine y TV, em Cuba, e Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF. Atualmente, é PhD em Comunicação e Informação pela UFRGS e PhD Student em Estudos Literários, Culturais e Inter Artísticos pela Universidade do Porto. Sua área de trabalho compreende estudos da relação entre imagem e texto pelo viés da memória, do gênero e da história social; escrita criativa para cinema e teatro e cruzamentos disciplinares entre vídeo, performance e literatura.

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