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Letras Verdes, Revista Latinoamericana de Estudios Socioambientales

On-line version ISSN 1390-6631

Letras Verdes  n.22 Quito Sep./Feb. 2017

https://doi.org/10.17141/letrasverdes.22.2017.2750 

Articles

Las aguas de São Paulo: reconexión de la ciudad y los ciudadanos con sus ríos

Waters of São Paulo: the reconnection of the city and citizens with their rivers

Camila Cavalheiro Ribeiro da Silva1  2  1

1Estudiante de la convocatoria 2016-2018 de la maestría en Estudios Urbanos de FLACSO, Ecuador.

2Arquitecta urbanista graduada en la Faculdad de Arquitectura y Urbanismo de la Universidade de São Paulo (FAU-USP) en 2015 . Correo: camila.cavalheiro.silva@gmail.com.


Resumen

A pesar de que la ciudad de São Paulo, Brasil, contiene una extensa red hidrográfica, su desarrollo urbano desde el inicio del siglo XX hasta la actualidad es realizado sin considerar el potencial y la necesidad de su integración con el agua en su cauce natural. En efecto, la urbanización explotó el potencial hídrico de la ciudad y a través de obras públicas, como la creación de vías expresas en las márgenes de los ríos Pinheiros y Tietê a partir de 1968, transformó drásticamente las dimensiones, el curso y hasta el flujo original de los ríos. La ciudad que resultó de este proceso generó insatisfacción en diversos frentes y, como respuesta a esto, tanto en el siglo XX como en el inicio del siglo XXI, surgieron variadas iniciativas de aproximación entre el agua, la ciudad y los ciudadanos. Con la intención de destacar algunos movimientos de reconexión entre la ciudad y los ríos urbanos como una manifestación de la ciudadanía subversiva y de la lucha por el derecho a la ciudad, este texto contiene tres partes. Primero, un sucinto marco teórico. Segundo, una breve contextualización de la hidrografía y de la urbanización de São Paulo. Tercero, la presentación de una serie de proyectos realizados con la intención de reconectar las personas y la ciudad con los ríos, organizados por áreas de actuación, seguida de las conclusiones.

Palabras clave: derecho a la ciudad; ríos urbanos;São Paulo; iniciativa ciudadanía subversiva.

Abstract

Although the city of São Paulo, Brazil, has an extensive hydrographic network, its urban development, since the beginning of the 20th century until recently, has been performed disregarding the potential and the need for integration with the water in its natural form. In fact, the urbanization exploited the hydric potential of the city and through public works, such as the creation of expressways on the margins of the rivers Pinheiros e Tietê since 1968, has transformed drastically the dimensions, the course and the original flow of the rivers. The city resulting from this process has generated dissatisfaction on several fronts and, as a response to this, both in the 20th century and the beginning of the 21st century, various initiatives emerged to bring together the water, the city and the citizens. With the purpose of highlighting some movements of reconnection between the city and the urban rivers as a manifestation of the subversive citizenship and the struggle for the right to the city, this text contains three parts. First, a succinct theoretical framework. Second, a brief contextualization of the hydrography and the urbanization of São Paulo. Third, a presentation of a series of projects developed with the intention of reconnecting the people and the city with the rivers, organized by field of action, followed by the conclusions.

Keywords: city; civil initiative; environmentalism; right to the city; São Paulo; subversive citizenship; urban rivers; water

Introdução

Em São Paulo, Brasil, existe uma grande variedade de iniciativas e projetos que pretendem criar, ou recriar, uma conexão entre as pessoas e os rios da cidade. Essa reconexão é necessária porque a urbanização de São Paulo, principalmente na primeira metade do século XX, ocorreu em função de fatores como o modernismo, a industrialização, a expansão rodoviária e o mercado imobiliário, e em detrimento da hidrografia natural da cidade. A natureza dos corpos d´agua foi totalmente alterada, desde a ocupação das margens até a canalização de córregos, para a produção de energia, para a construção de ruas, avenidas e novos edifícios, entre outras finalidades.

O resultado desta forma de urbanizar a cidade desconsiderando a importância e a força das águas, além de impor a ausência dos rios na vida urbana, contribuíram para o agravamento das inundações e até para a crise hídrica junto com outros fatores como explicanMarengoet al. (2015):

A combinação de baixos índices pluviométricos, principalmente durante os verões de 2013-2014 e 2014-2015, o grande crescimento da demanda de água, a ausência de planejamento adequado para o gerenciamento do recurso hídrico e a ausência de consciência coletiva dos consumidores brasileiros para o uso racional da água têm gerado a denominada “crise hídrica” (Marengoet al. 2015, 33).

Portanto, a insatisfação gerada a partir dessa omissão dos corpos d'água urbanos se transformou em motivação para a criação de projetos que recuperem não apenas a visibilidade dos rios da cidade, mas também que os aproximem das pessoas e que seus cursos naturais sejam conhecidos e respeitados.O objetivo deste texto é apresentar alguns desses projetos e iniciativas e analisarmos a partir das ideias de cidadania subversiva e do direito à cidade, contextualizados na história e a realidade de São Paulo. Para isso, este texto está dividido em três partes. Na primeira parte é exposto um sucinto marco teórico sobre cidadania subversiva e direito à cidade. Na segunda, é apresentada uma breve contextualização da cidade em relação aos rios e se divide entre “Hidrografia” e “Urbanização”. E na terceira parte, são apresentadas algumas iniciativas de aproximação dos cidadãos com os rios divididas pelas seguintes categorias de atuação: documentário, grupo de palestras, oficinas e expedições, mapeamento e site colaborativo, grupo de pesquisa, projeto urbano, literatura e bloco de carnaval. E, finalmente, o texto termina com uma reflexão sobre a importância dos projetos de reintegração urbana e social dos rios como forma de cidadania subversiva que reivindica o direito à cidade, tanto para o futuro como para a memória de São Paulo e dos seus cidadãos.

Cidadania Subversiva e Direito à Cidade

A ideia de que o mercado é determinante para o desenvolvimento urbano com enfoque econômico em detrimento da esfera social já foi discutida e comprovada por autores como Harvey (2014) e De Mattos (2016). A dominação territorial por parte do mercado tem como consequência diversas facetas da injustiça espacial, social e ambiental, e que leva, muitas vezes, à resistência e a luta por direitos (Janoschka 2016). Para Harvey (2014), a dominação privada da cidade com apoio estatal exemplifica a restrição do acesso universal ao direito à cidade. O “Direito à Cidade” foi um conceito apresentado inicialmente por Lefebvre (1973), referente ao direito à vida urbana, e inspirou outros autores a contribuir com a discussão do tema. Para Carlos (2007), o direito à cidade tem a ver com o direito à apropriação e com o uso cotidiano da cidade pelas pessoas. Ambos autores defendem a resistência popular contra processos hegemônicos que restringem o direito à cidade.

A resistência diante de hegemonias dominantes foi abordada também por outros autores, como Quijano (2011) e Robinson (2006). O primeiro defende que um novo mundo livre da hegemonia é possível a partir da resistência e da subversão, ou seja, da auto apropriação não colonizada ou dominada. Na mesma linha, Robinson (2006) nega a dominação das cidades por classes hegemônicas, defende que existem mais fluxos nas dinâmicas urbanas além dos fluxos financeiros e propõe a transferência do referencial urbano externo hegemónico para o referencial interno original.

Atualmente, a resistência e a subversão anti-hegemônicas são aplicadas principalmente por movimentos sociais e por indivíduos através da cidadania subversiva, interpretada por Sequera e Janoschka (2012) como uma cidadania além do dever versus direito individuais. Os autores agregam novas dimensões ao conceito básico de cidadania, como a ação desafiadora das relações de dominação, a articulação entre identidade e lugar, e os efeitos da lógica neoliberal de produção do espaço público.O espaço público é o principal cenário para os processos urbanos anteriormente mencionados, desde a dominação da cidade pelo mercado até a formação de novos espaços de cidadania, como coloca Delgado (2011), que destaca também a ambiguidade do papel do espaço público nas dinâmicas urbanas: por um lado, espaço democrático de mobilização popular, e, por outro, espaço como legitimador da dominação do capital (Delgado 2011).

O Contexto da Cidade de São Paulo em Relação aos Rios

Para compreender a motivação e a urgência das iniciativas em favor da reaproximação de São Paulo com a água, é importante conhecer brevemente o contexto da cidade em relação aos seus rios, tanto a partir da sua hidrografia como a partir da sua urbanização.

Hidrografia

A cidade de São Paulo está localizada morfologicamente no Planalto Atlântico ou Planalto Paulista, uma área que é drenada pela Rede Hidrográfica do Alto do Tietê, que nasce na Serra do Mar e leva água para o interior do Estado. A Bacia do Rio Tietê é bastante ramificada e tem diversas sub bacias em São Paulo, cidade cujos maiores e principais rios são o Rio Tietê, o Rio Pinheiros e o Rio Tamanduateí. Estes são rios de Planície, ou seja, estão em áreas de baixa declividade, são lentos e formam meandros por onde passam. Além destes rios principais, existem entre 300 e 500 córregos ocultos embaixo do asfalto. Todos estes corpos d´água estãorepresentados no Mapa 1.

Mapa 1 Mapa hidrográfico do município de São Paulo. 

Esta breve explicação de parte da hidrografia de São Paulo visa destacar a existência de uma grande rede de rios e corpos d'água na cidade, que é pouco conhecida porque foi escondida pela urbanização, como será relatado em seguida.

Urbanização

No início do século XX, a cidade se expandiu rapidamente e os rios eram vistos como um obstáculo para o crescimento urbanoe para a modernização, cujo impacto na estruturação da cidade se relaciona com a iniciativa da Companhia Light2 em realizar o “aproveitamento hidrológico da Bacia do Alto Tietê, que em suas diferentes seções, está ligado a diferentes propósitos. Seja ao abastecimento, à utilização da força hidráulica para produzir hidroeletricidade e até como condutor de dejetos” (Seabra 2015, 38).A mesma autora explica que a primeira grande obra hídrica que gerou impactos no Rio Pinheiros foi o represamento do Rio Guarapiranga, em 1907, que provocou não apenas a alteração do regime original do rio mas também modificou os ecossistemas naturais (Seabra 2015).

A urbanização estabelecida no começo do século XX, portanto, foi realizada considerando a exploração do sistema hídrico, mas desconsiderando a integração com os rios e desrespeitando seu curso natural.As várzeas dos rios eram consideradas insalubres e foco de doenças enquanto os rios se tornaram reservatórios de esgoto e lixo. Ambos, rio e várzea, representavam uma barreira tanto para a mobilidade urbana como para os interesses do mercado imobiliário em ter mais áreas urbanas onde construir. E para próprio setor público, os corpos d´agua urbanos eram apenas uma oportunidade de aumentar seu orçamento através do processo de aterramento, loteamento e venda as áreas do leito do rio. A partir dos anos 20, começaram a ser desenvolvidos projetos para alterar aspectos naturais do sistema hídrico, comoretificar o curso dos rios, tantoem função dos interesses do mercado imobiliário e do setor público,anteriormente mencionados, como em função da geração de energia. As alterações foram oficializadas pela Lei nº 2249/1927, que concedia a Companhia Light direitos de captar águas do Tietê e realizar a reversão do curso original do Rio Pinheiros da seguinte forma: “A Companhia Light operando sob o regime de Concessão de Serviços Públicos, empreendeu as transformações ocorridas no Rio Pinheiros, as quais consistiam em canalizar, alargar, retificar aprofundar e inverter os leitos dos rios Pinheiros e de seus formadores” (Seabra 2015, 40).

Na década de 30, o chamado Plano de Avenidas, sob comando do prefeito Francisco Prestes Maia, propunha a organização do tecido urbano a partir de anéis concêntricos e avenidas radiais e colocava em prática a retificação dos rios, especialmente o Tietê e o Tamanduateí, além da construção de avenidas marginais como estruturadoras da malha viária. O Plano não foi executado em sua totalidade, mas foi modelo para planos urbanos posteriores por ser pioneiro na “vinculação da construção de avenidas à já usual canalização dos córregos e rios” (Travassos 2010, 23).

O Plano de Avenidasdeu prioridade ao transporte individual e, portanto, houve um crescimento da frota de automóveis em detrimento dos transportes coletivos sobre trilhos, de acordo com Ikeda (2016): “a rede de transporte público não era o foco de seus argumentos. Prestes Maia acreditava provavelmente que sua rede de avenidas seria suficiente para comportar todo o tráfego da cidade. Rapidamente, porém, a frota de veículos se multiplicou” (Ikeda 2016, 209).O enfoque rodoviário do plano é destacado porDelijaicov (1998), que explica que o Plano de Avenidas resultou em um projeto a serviço dos interesses rodoviários que ignorou a geografia natural da cidade e desconsiderou qualquer outro modal de transporte. São Paulo, portanto, cresceu anulando qualquer possível relação entre os cidadãos e as águas urbanas, cuja única função consequente da urbanização foi a de levar o esgoto, o que resultou em rios poluídos e rejeitados.

Como os três principais rios da cidade representavam importantes conexões urbanas, ocorreu também a retificação da várzea do Rio Pinheiros, cuja marcação pode ser observada na Foto 1 , realizada como parte da intervenção definida pela Lei nº 2249/1927.Como resultado, foram criados25.000km² de terrenos na margem do rio retificado que seriam ocupados e urbanizados a partir dos anos 40 pela especulação imobiliária que não deixou espaço nem para praças (Petrone 1963). A autora Seabra (2015) conta que, na década de 30, o domínio da Companhia Light sobre essas terras da várzea do Rio Pinheiros se consolidava cada vez mais assim como seu poder diante dos interessados nesses terrenos que enviavam à empresa pedidos de permissão para utilização das várzeas.

Por outro lado, os primeiros casos de manifestação popular, principalmente pela insatisfação em relação aos valores das indenizações por desapropriação, ocorreram nesse mesmo período, e até “Chegou-se à criação de uma organização de moradores contra a Light (...)” (Seabra 2015, 45). As manifestações não obtiveram resultados significativos (Seabra 2015) e apesar da disputa pelo uso das margens dos rios, as áreas mais próximas do Rios Pinheiros e Tietê foram transformadas em grandes vias expressas a partir do Plano Urbanístico Básico de 1968. As avenidas marginais, como são chamadas essas grandes vias, foram inspiradas nas concepções do urbanista americano Robert Moses de implementar vias de circulação rápida e acesso fácil nas cidades. Essas transformações revelam que “temos, portanto, uma forte tradição, na administração pública, de desprezo aos rios e de sobrevalorização do sistema viário” (Bartalini 2004, 5).

Foto 1 Marcação para Retificação do Rio Pinheiros, em São Paulo, nos anos 30. 

Além do isolamento gerado por essas rodovias urbanas, estes rios são cercados por grandes muros que os separam da cidade e das pessoas. Paralelamente, os outros inúmeros corpos d'água de São Paulo foram canalizados e enterrados embaixo do asfalto. Em dias de muita chuva, a inundação é inevitável, afinal, essas águas estão ocultas mas seguem existindo e, quando necessário, retomam o lugar delas que foi ocupado pela urbanização. A autora Ikeda (2016) explica como o confinamento dos canais urbanos se relaciona como as enchentes e inundações3 por conta da desconsideração da força da vazão natural das águas: “A diminuição dos leitos dos rios, não acompanhada da construção de barragens e lagos de contenção, transformou as cheias anuais em verdadeiras catástrofes: enchentes e inundações que matam e desabrigam famílias” (Ikeda 2016, 16). A mesma autora ainda explica que a impermeabilização das margens dos rios através da ocupação também contribui para o extravasamento das águas dos rios nas vias e construções que o ocupam.

Adicionalmente, a geógrafa Seabra (2015) associa a causa das inundações ao aproveitamento hidrelétrico da Bacia do Alto Tietê e à maneira como ocorreu a industrialização na cidade: “As dificuldades do escoamento superficial, em face da forma como os rios foram integrados ao processo de modernização social pela indústria em São Paulo, geraram um crônico problema de escoamento superficial” (Seabra 2015, 38). A autora ainda destaca o conflito de interesses entre a produção de energia pela hidrelétrica, que exigia sempre um controle do nível dos rios Tietê e Pinheiros, e a manutenção do nível e dos fluxos naturais dos rios para evitar enchentes em épocas chuvosas, que foi impossível (Seabra 2015). Portanto, a mesma Seabra defende que “A enchente é coisa que nós inventamos, entende? Ela é produto da urbanização” em depoimento para o documentário “Entre Rios” (Ferraz 2009).

As represas Guarapiranga e Billings, localizadas no sul da cidade e representantes dessa urbanização mencionada por Seabra (2015), recebem artificialmente os fluxos dos rios Tietê e Pinheiros. Ambas represas foram criadas no início do século XX para abastecimento público, o que leva à conclusão de que o esgoto despejado nos rios era levado para estas represas poluindo as águas que abastecem a própria cidade. Até os anos 90, 83% do esgoto gerado pela população da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) era lançadoin naturanos rios e o tratamento do restante era garantido pelas duas únicas Estações de Tratamento de Esgotos (ETE): Barueri e Suzano (Governo do Estado de São Paulo 2011). Em 1992, o Governo do Estado de São Paulo ampliou a capacidade do sistema através da construção de três novas ETE (ABC, Parque Novo Mundo e São Miguel) além da ampliação da ETE de Barueri (Governo do Estado de São Paulo 2011).

Desde então, está proibido o bombeamento de água do Rio Pinheiros para as represas para evitar a poluição das águas utilizadas para abastecimento, com algumas exceções em casos emergenciais de enchente (Reina 2011). Porém, esses bombeamentos esporádicos são realizados de forma negligente de acordo com o relato de Virgílio de Farias, presidente do Movimento em Defesa da Vida do ABC: “O bombeamento desde 1992 é feito sem estudo de impacto ambiental e sem licenciamento” (Virgílio de Farias para reportagem do Jornal O Estado de São Paulo, 2 de março de 2011).

Ainda assim, muitos outros problemas continuam reprimindo e poluindo os corpos d'água de São Paulo, incluindo tanto os impactos das reformas do sistema viário como das ocupações ilegais, como expõe Bartalini (2004, 5):

Quando não entaladas pelas pistas das avenidas, as margens dos rios serviram de chão para os mais pobres, desatendidos pela política habitacional. Nos casos de remoção, observa-se a regra de construir vias de automóveis, o mais rente possível do canal, para evitar futuras ocupações.

A situação atual dos rios de São Paulo revela a forma negligente como o setor público tratou as águas da cidade nos planos e projetos urbanos ao longo do tempo. A ausência de manejo adequado das águas e da infraestrutura rejeitou a possibilidade de criar espaços de lazer relacionados aos rios, desprezou a manutenção da qualidade e limpeza da água e excluiu o transporte fluvial das alternativas de mobilidade de pessoas e de produtos.

No ano de 2014, de forma paradoxal em relação à existência de fortes enchentes, ocorreu a chamada Crise da Água em São Paulo. Durante essa crise, os valores de chuva foram abaixo da média histórica na região sudeste por conta de um fenômeno chamado bloqueio atmosférico,4 que durou 45 dias e provocou a menor marca histórica dos níveis dos reservatórios dos sistemas de abastecimento da região: 13,4% no sistema Cantareira chegou em 31 de março de 2014 (Marengoet al. 2015). Ademais, os autores também atribuem a responsabilidade da crise hídrica ao gerenciamento ineficiente da agua, ao aumento da demanda e ao uso irracional. As consequências da crise englobam as esferas social, econômica e ambiental, sendo o efeito mais gritante a escassez de abastecimento de água para a população, o que gerou protestos e manifestações (Marengoet al. 2015).Mais uma vez, a irresponsabilidade do setor público, associada com a quantidade reduzida de chuvas em relação à média histórica, resultou na impossibilidade de abastecimento suficiente de água para diversas cidades do Estado, inclusive São Paulo.

A partirdesse contexto de negação da água no desenvolvimento urbano de São Paulo e considerando como uma restrição ao direito à cidade tanto as limitações causadas pelas inundações assim como o isolamento dos rios urbanos, é possível dizer que a apropriação do sistema hídrico da cidade pelas mãos de empresas e imobiliárias representa uma forma da dominação mercantil da urbanização em detrimento de aspectos sociais e ambientais.Portanto, com a privação do aceso universal ao direito à cidade e à natureza resultante desta dominação, surgiu a urgênciade reintegração dos rios com a cidade e com os cidadãos. E algumas das iniciativas desta reaproximação serão apresentadas a seguir.

Aproximações entre os Rios, os Cidadãos e a Cidade

A contextualização exposta anteriormenteexplica um pouco do que motivou uma grande variedade de cidadãos, entre ativistas e acadêmicos, representantes dos projetos que serão expostos, a se organizarem para criar alternativas de aproximação dos rios urbanos: o grande potencial hídrico da cidade e a indiferença com que eles foram tratados durante a urbanização de São Paulo. Existem muitos projetos inspiradores de reconexão da cidade com seus rios, com exemplos que vão desde a criação de um documentário sobre o desenvolvimento urbano de São Paulo a partir dos corpos d´água até a formação de blocos de carnaval para divulgar a existência de córregos escondidos embaixo do asfalto. Para este texto, foram selecionados seis desses projetos com a intenção de revelar suas variadas formas de atuação- entre elas documentário, grupo de palestras, oficinas e expedições, mapeamento e site colaborativo, grupo de pesquisa, projeto urbano e bloco de carnaval- e de destacar projetos cujo trabalho já causou, ou tem potencial para causar, um grande impacto na sociedade, no meio ambiente e na cidade.

Documentário - Entre Rios

O primeiro exemplo selecionado para ser apresentado neste texto, foi uma das inspirações para a elaboração deste texto e para a busca de outras formas de interação da cidade com os rios. A iniciativa se tratado documentário “Entre Rios”, que conta a história de São Paulo a partir de uma perspectiva pouco comum em relatos sobre o desenvolvimento da cidade: a perspectiva das águas. Sob a ótica dos rios e córregos, o documentário explica que apesar da cidade ter se desenvolvido como se eles não existissem, a dinamicidade com que as transformações urbanas ocorrem representa a possibilidade do surgimento novas formas de tratamento dos rios urbanos tanto pela sociedade como pelo setor público(Ferraz 2009).

O vídeo foi realizado em 2009 como parte do projeto de conclusão de curso de um grupo de estudantes de Audiovisual do Centro Universitário Senac de São Paulo e contou com depoimentos de diversos especialistas, como a geografa Odette Seabra e o arquiteto urbanista Alexandre Delijaicov. Desde então e até 2017, o documentário já foi assistido mais de 270.000 vezes na plataforma Vímeo, onde foi originalmente publicado, e mais de 600.000 vezes no Youtube, onde foi reproduzido. Portanto, é possível dizer que o vídeo despertou o interesse de muitas pessoas em conhecer melhor a grandiosidade da rede hidrográfica de São Paulo.O caráter subversivo do documentário é associado ao sentido de identidade que ele cria entre os espectadores e a cidade de São Paulo por contar a história da urbanização de São Paulo a partir de seus rios. Porém, apesar de inspirador, o documentário se limita a isso já que sua finalidade inicial era um trabalho de graduação e os seus realizadores seguiram caminhos diferentes.

Palestras, Oficinas e Expedições - Rios e Ruas

O segundo exemplo, é o projeto Rios e Ruas que atua desde 2010 em diversas cidades, especialmente São Paulo, e é uma das iniciativas mais antigas e que segue atuante dentre as apresentadas neste texto. Seus fundadores, o urbanista José Bueno, o geógrafo Luiz de Campos Jr e a bióloga Juliana Gatti, acreditam que a percepção e o reconhecimento da presença da natureza na cidade - assim como sua preservação e visibilidade -fazem parte da sustentabilidade urbana.A partir destas considerações, o projeto tem a missão de promover e inspirar múltiplas experiências para que o maior número possível de pessoas descubra, busque e defenda rios limpos e livres nas cidades brasileiras (Rios e Ruas 2010).

Para isso, o grupo promove palestras, oficinas teórico-práticas e expedições, como a da foto 2, em busca de descobrir e reconhecer natureza das nascentes e córregos encobertos pela cidade.Consequentemente, o Rios e Ruas promove uma compreensão afetiva do uso do espaço urbano relacionado ao espaço natural. A compreensão afetiva acontece acompanhada da mudança no olhar sobre a cidade e suas águas, da conscientização sobre a responsabilidade humana no espaço urbano e natural que será deixado para as seguintes gerações.

A criação do “Rios e Ruas”, diferente do “Entre Rios”, foi motivada por interesses pessoais e coletivos em relação aos recursos hídricos de São Paulo. Talvez por esse inicial sentimento de identidade, pelo enfoque na transferência do olhar e da atenção para dentro, para onde se pudesse ver ou escutar um corpo d'água na cidade,além da longa duração e da variedade de atividades, o projeto representa um caso consolidado de cidadania subversiva.

Foto 2 Expedição Rios e Ruas pelo Córrego das Corujas, São Paulo, em 2014. 

Ao longo dos seus sete anos de existência, o Rios e Ruas expandiu naturalmente sua área de atuação, em conjunto com iniciativas civis, privadas e públicas. Atualmente, conforme registrado no site do projeto,o grupo busca fomentar a sustentabilidade a partir de três pilares: esporte, arte e educação para promover o desenvolvimento da saúde, da cultura e da cidadania. Além das atividades iniciais, o projeto também faz a divulgação de outras iniciativas em prol dos rios urbanos, organiza mostras culturais e exposições artísticas e promove atividades físicas como o Circuito de Corrida e Passeio que acontece anualmente desde 2014 ecujos trajetos se baseiam nos cursos omitidos dos rios urbanos. A Foto 3 mostra a chegada do percurso realizado no centro histórico no Circuito Rios e Ruas de 2014.

Foto 3 Chegada da etapa Centro Histórico no Circuito Rios e Ruas, em 2014 

A atividade do “Rios e Ruas” mais divulgada na mídia recentemente, em 2017, é a exposição interativa “Rios Des.cobertos:O Resgate das Águas da Cidade”, realizada em parceria com o Estúdio Laborg, que desenvolve projetos audiovisuais. Essa parceria desenvolveu uma maquete interativa que revela os rios escondidos de São Paulo e proporciona uma experiência sensorial e lúdica para os visitantes. O uso da tecnologia e de um mapa 3D foram uma das maiores conquistas do “Rios e Ruas”, como explicou José Bueno em entrevista para o site Conexão Planeta (Nunes 2016): “Assim, o Rios e Ruas sai da segunda dimensão e caminha para a terceira. A quarta virá com os rios abertos, quando eles ganharem materialidade no tecido urbano”. Além da maquete, totens explicativos e expedições pelo caminho de rios urbanos escondidos também fazem parte da mostra, exposta desde setembro de 2016 de forma itinerante entre unidades do Serviço Social do Comércio (SESC).

O registro ea propagação das atividades,do conhecimento, das experiências e das descobertas do projeto é feita através do site do “Rios e Ruas”, que conta com um amplo acervo de materiais sobre a água, especialmente no espaço urbano, e sobre todas as atividades realizadas pelo grupo.Quanto aos objetivos e ao futuro do projeto, José Bueno conta que O que a gente quer não é só mostrar que há rios vivos na cidade. Essa etapa está se cumprindo desde o início do nosso trabalho. O que a gente quer, mesmo, é mexer na cara da cidade, trazer esses rios de volta para a convivência com as ruas, com as pessoas, com a cidade - se não todos os rios, pelo menos alguns!” (José Bueno em entrevista para o site Conexão Planeta, Brasil, 29 de setembro de 2016).

Mapeamento e Site Colaborativo - Rios (In)visíveis

Outra iniciativa civil que também busca conduzir o olhar das pessoas para os rios tapados, é o projeto Rios (In)visíveis, cuja forma final é um site colaborativo. Segundo informações do próprio site, a ideia do projeto surgiu em 2014 como uma proposta do Coletivo Escafandro, formado pelas brasileiras Iana Chan, Pamela Bassi e Stephanie Kim Abe, para o evento EcoHack World, que buscava propostas inovadoras para o tema do meio ambiente. Os resultados do evento foram o desenvolvimento de bancos de dados, mapeamentos e outros elementos para a visualização de conteúdos que promovam uma melhor compreensão ambiental.

A contribuição do coletivo foi relacionada às águas urbanas paulistas. Elas decidiram mapear e revelar os rios ocultos embaixo das ruas e avenidas de São Paulo. A primeira versão do mapa foi realizada a partir dos dados disponibilizados no Plano Diretor de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais no Município de São Paulo (PMAPSP).Depois do evento, surpreendidas com a grande repercussão da proposta, as criadoras do Rios (In)visíveis transformaram o mapa em um site colaborativo onde qualquer pessoa pode contribuir com imagens, memórias e histórias relacionadas com as águas da cidade. Elas solicitam que os relatos sejam, preferencialmente, escritos em primeira pessoa para gerar uma reflexão da relação dos leitores-autores com os rios e córregosescondidos. O site, portanto, é uma plataforma digital de aproximação das pessoas com os rios urbanos a partir de novos olhares para a cidade e para a natureza.

Nos depoimentos compartilhadosno site do projeto, são reveladas as relações afetivas das pessoas com as águas e as iniciativas pontuais de grupos que se reuniram para recuperar nascentes e corpos d´água de seus bairros, como, por exemplo, as Nascentes do Iquiririm (Foto 4). Segundo a descrição da iniciativa no site do Rios (In)visíveis, a motivação para essas mobilizações locais envolve desde a requalificação ambiental, a criação de espaços públicos recreativos e até o combateda dengue com a criação de peixes que comem a larva do mosquito transmissor da doença.

Foto 4 Mutirão de recuperação da Nascente do Iquiririm, em 2015 

Por conta da habilidade deste projeto para promover as iniciativas de aproximação afetiva entre os cidadãos e águas urbanas, as mídias nacional e internacional divulgaram tanto o projeto Rios (In)visíveis como algumas iniciativas expostas no site, por exemplo, na reportagem “Hidrografia de SP dobra com a descoberta de 300 ‘rios invisíveis’”de Edison Veiga, em 2015, no Jornal Estado de São Paulo.A pesquisa realizada sobre o Rios (In)visíveis deixou dúvidas quanto à sua consolidação a longo prazo. Por um lado, o projeto se assemelha ao “Entre Rios” por haver sido motivado por algum fator externo, no caso um concurso. Por outro, se diferencia do documentário por contar com instrumentos de participação colaborativa e explorado outras formas de atuação a partir das colaborações, porém, de forma sutil ou pouco registrada, o que causou a incerteza sobre a perenidade do projeto. Apesar disso, sua importância se fixou pelos registros colaborativos de exemplos de cidadanias subversivas e lutas por direito à cidade através da aproximação com as águas.

4.4. Grupo de Pesquisa - Grupo Metrópole Fluvial

Além das iniciativas civis, as universidades também têm um papel importante na incorporação dos rios no desenvolvimento das cidades. O Grupo Metrópole Fluvial (GMF), por exemplo, se dedica a realizar pesquisas em projetos de arquitetura de infraestruturas urbanas fluviais.O GMF está inserido no Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e é formado por professores, estudantes e técnicos sob coordenação dos professores Alexandre Delijaicov e Milton Braga e do arquiteto André Takiya.

O objetivo do grupo é fomentar e difundir a cultura de projetos arquitetônicos de infraestruturas de cidades fluviais, com enfoque nas articulações urbanística dos rios, canais e lagos artificiais, principalmente na Região Metropolitana de São Paulo. Para isso, são elaborados estudos, programas, ações e projetos em conjunto com órgãos públicos, dentro dos seguintes eixos estruturadores: Ensino, Pesquisa e Extensão.Dentro da missão do GMF, estão incluídos: a promoção de uma urbanização planejada que tenha a água como eixo referencial e os rios como principais logradouros públicos; a consolidação da integração das orlas fluviais como território de qualidade ambiental com infraestrutura e equipamentos públicos e sociais; a navegação fluvial urbana; o transporte fluvial urbano de cargas públicas; a navegação fluvial em águas restritas de canais estreitos e rasos; e a transformação de resíduos sólidos em matéria prima, a chamada logística reversa.Portanto, o GMF contribui para a reintegração urbana da rede hidrográfica de São Paulo através da educação, da pesquisa cientifica e da elaboração de projetos sustentáveis.

Estudos de Pré-Viabilidade do Hidroanel Metropolitano de São Paulo

O principal trabalho realizado pelo GMF foi o desenvolvimento da articulação arquitetônica e urbanística para os Estudos de Pré-Viabilidade do Hidroanel Metropolitano de São Paulo (HMSP), licitado em 2009 pelo Departamento Hidroviário da Secretaria Estadual de Logística e Transportes do Governo do Estado de São Paulo.

O projeto do HMSP foi desenvolvido com base na missão do GMF e cria uma rede fluvial navegável na Região Metropolitana de São Paulo com uma extensão de 170km de hidrovias urbanas compostas pelos rios Tietê, Pinheiros e pelas represas Billings e Taiaçupeba,conectadas por um canal artificial e divididas em seis trechos, como mostrado no mapa 2.

Mapa 2 Trechos do Hidroanel Metropolitano de São Paulo. 

Três Política Nacionais são contempladas nas diretrizes do projeto do HMSP: Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Referente ao determinado pela Lei nº9433/1997 dePNRH, o projeto partiu do conceito de uso múltiplo das águas, consideradas um bem público e um recurso natural limitado que deve ser utilizado de forma racional e diversificada e cujo acesso deve ser universal. Além disso, assim como previsto na PNRH, a proposta do HMSP pretende alcançar um desenvolvimento urbano sustentável com o uso integrado dos recursos hídricos, incluindo o transporte hidroviário. Tanto a transformação dos rios urbanos em hidrovias, para transporte de carga e de passageiros, como a proposição do uso do espaço público das margens para lazer atende à versatilidade de usos das águas e, adicionalmente, contribuem para a regularização da macrodrenagem urbana.

Quanto às PNMU, cuja Lei nº12.587 foi sancionada apenas em 2012, o projeto contribui com a integração de modais de transporte e com a maior facilidade de acesso, melhorando a mobilidade urbana de carga e de passageiros. Dentre as cargas previstas estão as Cargas Públicas, ou seja, o transporte dos resíduos sólidos urbanos, em acordo com as determinações da Lei nº12.305/2010 de PNRS, que atribui ao setor público a responsabilidade do processo de gestão das cargas públicas, desde a coleta até a destinação final. Como o projeto prevê soluções sustentáveis para todas as etapas deste processo, a justificativa para a sua execuçãose baseia na gestão das cargas públicas.

As perspectivas esperadas a partir do HMSP são de redução das enchentes a partir do melhor controle das águas; de redução da poluição atmosférica e do trânsito de automóveis por conta da redução do transporte de resíduos sólidos urbanos por caminhões; e de melhor qualidade ambiental urbana com a integração das águas. O projeto do HMSP foi apresentado em 2012, em um seminário realizado na FAUUSP e todo o conteúdo do trabalho está disponível no site do GMF. Não há previsão para a implementação do projeto, mas certamente o seu desenvolvimento expandiu as perspectivas do desenvolvimento de São Paulo em harmonia com os rios da cidade além de representar um passo muito além da cidadania subversiva. O HMSP avança em direção a uma intervenção metropolitana estrutural que abre uma nova perspectiva efetiva para a relação da RMSP com os rios, revelando como o hidroanel isso contribuiria para o direito à cidade. A grandiosidade da inovação e da complexidade do projeto também caracteriza a sua dificuldade de execução por motivos como a dependência do setor público e de elevados recursos.

Projeto Urbano - Parque Linear Cantinho do Céu

Assim como o HMSP, outros projetos urbanos que integram os rios à cidade, que respeitam o curso natural das águas e que não promovem a poluição da rede hidrográfica, são exemplos de urbanismos sustentáveis e representam um grande avanço na relação entre o desenvolvimento urbano e a natureza na cidade de São Paulo.O projeto do Parque Linear Cantinho do Céu (PLCC), diferentemente do caráter de infraestrutura urbana fluvial metropolitana do HMSP, tem como sua principal contribuição a integração da água com a cidade ao promover o uso recreativo de parte da orla da represa Billings, na zona sul de São Paulo, e a requalificação urbanística dos assentamentos urbanos precários adjacentes.

O projeto foi elaborado em 2008 pelo escritório Boldarini Arquitetos Associados, em colaboração com a Secretaria Municipal de Habitação, e propõe a urbanização de loteamentos irregulares na área chamada Cantinho do Céu, nas margens da represa Billings. Por ser uma área de proteção ambiental ocupada irregularmente e com acesso direto à represa, o projeto superou o desafio de encontrar uma solução ambientalmente e urbanisticamente adequada para o uso das margens, para a valorização do espaço público coletivo e para a implementação de saneamento básico, ausente até então. E, além disso, era necessário reverter o impacto ambiental causado no manancialpela ausência do sistema de saneamento.

O ponto de partida da proposta, foi a propagaçãoda importância do espaço público e coletivo - ruas, praças, parques - na comunidade local. O projeto foi desenvolvido com a intenção de qualificar urbanisticamente e ambientalmente o bairro e reforçar relações entre os moradores, a cidade e o meio ambiente para a manutenção de um espaço integrado com a natureza para as próximas gerações.O projeto é composto por uma série de estratégias que promovem melhoria urbanísticas, ambientais, sanitárias, sociais e de mobilidade. Foram planejadas obras como a reconfiguração do desenho e da pavimentação das vias, a complementação do saneamento básico e a construção de um parque linear na orla da represa, todas com o mínimo de desapropriações possível. Ademais, diversas das decisões construtivas se basearam no escoamento das águas, como por exemplo, o uso de pisos permeáveis e a definição da inclinação das ruas de modo que a água escoe pelo meio das ruas, longe das casas.

O projeto do PLCC prevê uma faixa de cerca de 7km de parque rente à represa e corresponde aos espaços das edificações removidas por estarem impossibilitadas de se adequar ao sistema de saneamento. No processo criativo, foram consideradas as particularidades hidrográficas, geográficas e naturais, o que resultou na divisão do parque em seis trechos separados em duas categorias. Por um lado, áreas de conservação e preservação, e, por outro, áreas de lazer, esportes, contemplação e recreação, formando um sistema de áreas verdes que, além de assegurar a qualidade ambiente, melhora a qualidade de vida urbana. A construção do parque foi dividida em diversas etapas para cada trecho, conforme foram concluídas as desapropriações. Até hoje, 2017, a primeira etapa do primeiro trecho já está concluída, como pode ser observado na foto 5e corresponde a 1,5 km de extensão de parque.

Foto 5 Parte da primeira etapa concluída do Parque Linear Cantinho do Céu, São Paulo. 

O PLCC representa uma solução possível para as questões referentes à ocupação clandestina das margens dos corpos d'água que além de poluir as águas, não garante moradiaadequada. O que se destaca no PLCC é a apropriação não apenas ambiental, mas também social, contribuindo ao melhor acesso ao direito à cidade por pessoas geralmente ignoradas pela urbanização.Quando o parque estiver concluído, além de servir como uma faixa de proteção entre a represa e cidade, evitando novas ocupações na orla, também será um equipamento de integração da água na vida daqueles que se instalaram perto da represa por, geralmente, serem privados de qualidade de vida urbana.

Bloco de Carnaval - Bloco Fluvial do Peixe Seco

A última categoria de iniciativas de aproximação entre as pessoas e os rios selecionada para este texto foi a dos blocos de carnaval de São Paulo. Além de se manifestarem de forma musical, poética e artística, os grupos carnavalescos também fazem críticas e denúncias, contam histórias e são uma forma de expressão característica do Brasil. Alguns blocos se destacam por colocar a água como tema central do carnaval paulista.Seja para denunciar a negligência do governo estadual durante a crise hídrica, como a Sereia da Cantareira; seja para dar visibilidade para os rios enterrados, como o Bloco do Água Preta e o Bloco Fluvial do Peixe Seco (BFPS), que receberá maior atenção neste texto; os blocos conseguiram envolver a população na reconexão com as águas urbanas.

O BFPS começou a partir de uma intervenção realizada em 2011, em um bairro da zona leste de São Paulo, onde as inundações são frequentes. Para alertar sobre o problema das enchentes, o Coletivo Mapa Xilográfico construiu um barco com rodas para navegar pelas ruas. Anos depois, a intervenção se repetiu em outros bairros, revelando o curso de rios que foram encobertos pela via pública. As intervenções originaram, então, o bloco de carnaval BFPS, cujo nome conta um pouco da história de um dos principais rios da cidade. As palavras Peixe Seco em português são a tradução da palavra Piratininga em tupi, que era o antigo nome do Rio Tamanduateí. E o motivo deste nome inicial era o fato dos peixes ficarem presos nas margens do rio e morrerem secos quando a água baixava depois dos períodos de cheia.

Com o objetivo de direcionar o olhar dos cidadãos para os rios ocultos e oprimidos de São Paulo, o bloco reuniu pessoas interessadas em melhorar o futuro dos rios urbanos e saiu às ruas pela primeira vez no carnaval de 2014. O trajeto do bloco seguiu pela Avenida Nove de Julho, que encobre o curso do Rio Saracura, visível algumas partes do caminho, ao som do sambacriado por Diogo Rios para o bloco “A rua é do povo que trafega / É do rio de quem navega / É do samba que passou”. O BFPS saiu no carnaval dos anos seguintes, como retratado na Foto 6, e continua revelando a história e a existência dos rios ocultos da cidade com música e animação nos carnavais paulistas.

Os blocos de carnaval representam a forma de cidadania subversiva mais similar a um protesto ou manifestação popular. A apropriação do espaço público das ruas, um dos símbolos da urbanização, com uma atividade para revelar o fluxo das águas através do fluxo de pessoas é um exemplo claro de resistência e subversão diante do isolamento dos rios imposto pelo desenvolvimento urbano de São Paulo.

Conclusão

O estudo e levantamento de iniciativas que proporcionam novos olhares para a existência, a importância e o potencial das águas da cidade de São Paulo, revelou um universo de possibilidades sustentáveis para o futuro dos rios urbanos. E os resultados e conquistas alcançados pelos projetos expostos comprovam a força e a importância de cada iniciativa tanto para o futuro como para a memória da cidade, do meio ambiente e da população. É evidente que essas ações não substituem as obrigações públicas de gestão hídrica, porém claramente geram de alguma forma uma aproximação dos cidadãos com as águas da cidade, como explica Bartalini (2004, 15): “Mas se essas ações não exumam o córrego, ao menos vivificam sua memória, ao integrar seus rastros à rede de espaços livres, verdes ou não, com alguma decência, ou decoro, como convém a tudo o que é público”.

Foto 6 Bloco Fluvial do Peixe Seco no Carnaval de São Paulo de 2015. 

Portanto, independentemente da consolidação, do tipo - documentário ou projeto urbano - dos projetos apresentados, é possível afirmar que eles representam sim uma forma de cidadania subversiva (Sequera e Janoschka 2012), por diversos motivos. Pela forma como se recusam a aceitar a relação com os rios imposta pela a urbanização, pela criação de uma identidade entre as pessoas e o local onde elas vivem através da aproximação física e afetiva das águas e da apropriação das nascentes, revelando como o acesso à água e à natureza também fazem parte do direito à cidade.

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1Especialización en Gestión y Desarrollo Urbano Sostenible en el Institute of Housing and Urban Studies of the Erasmus University Rotterdam (IHS-EUR) en 2014

2A Companhia Light era uma empresa canadense que “obteve concessão para atuar na cidade nos serviços de geração de energia elétrica e bondes elétricos no ano de 1899” (Ikeda 2016, 200), e que, em parceria com outras empresas e com o setor público controlou grande parte do desenvolvimento urbano de São Paulo durante o século XX.

3A diferença entre enchente e inundação é explicada por Travassos (2010, 41): “é preciso imaginar a calha de um rio, em sua porção mais bem definida, ou leitor menor. As enchentes, em geral, não ultrapassam o leito menor, enquanto as inundações extravasam o limite do canal, atingindo a planície de inundação ou várzea, no leito maior; é possível dizer que toda inundação vem de uma enchente”.

4O bloqueio atmosférico consiste em “um intenso, persistente e anômalo sistema de alta pressão atmosférica que prejudicou (...) a passagem/desenvolvimento dos principais sistemas causadores de chuva, como a Zona de Convergência do Atlântico Sul e as frentes frias” (Marengoet al. 2015, 33).

Recibido: de 2017; Aprobado: de 2017

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