Introduçao
Este trabalho é o resultado de diferentes projetos de extensão universitária e consultorias com empreendedores de periferia no Rio de Janeiro (RJ), ao longo de duas décadas, que foram intensificados a partir de 2020 como tentativa de mitigar os impactos que a crise sanitária provocou aos que a literatura convencionou chamar de empreendedores por necessidade (GEM 2019). O aumento das desigualdades sociais, a pandemia da COVID-19 e a continuidade do desmonte das políticas públicas têm levado mais brasileiros à situação de pobreza, desemprego e insegurança alimentar. Em 2022, segundo o relatório do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil, conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (Rede PENSSAN), o número de domicílios com moradores passando fome saltou de 9 % (19,1 milhões de pessoas) para 15,5 % (33,1 milhões de pessoas), o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano.
Ao longo dos últimos anos o povo brasileiro vem empobrecendo progressivamente e enfrentando consequências da precarização da vida, sem suporte adequado e efetivo do Estado. O mesmo relatório afirma que é evidente que a reativação da economia é insuficiente para o combate à fome.
De acordo com o relatório World Economic Outlook (FMI 2022), a atividade econômica mundial está passando por uma desaceleração acentuada em cenário de inflação maior do que se viu nas últimas décadas. A crise do custo de vida, o aperto das condições financeiras na maioria das regiões do planeta, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a persistente pandemia de COVID-19 são fatores que pesam ainda mais sobre essas perspectivas. Além do mais, o relatório prevê que o crescimento mundial desacelere 2,7 % em 2023.
Segundo projeções realizadas pela OIT (2023), o crescimento global de emprego será de apenas 1 % no ano de 2023 e, em todo o mundo, o desemprego deve atingir outros 3 milhões de pessoas neste ano, chegando em 208 milhões, o que corresponde a uma taxa de desemprego global de 5,8 %. Isso significa que o desemprego global permanecerá 16 milhões acima do valor de referência pré-COVID-19, estabelecido em 2019.
Toda essa perspectiva no mundo e no Brasil com a fome e o desemprego, tem apontado uma alternativa para parte da população: o autoemprego e/ou o empreendedorismo -em alguns casos eles coincidem.
Conforme dados do GEM (2021) o Brasil bateu recorde na abertura de novos negócios no ano de 2020, com a média de 682,7 mil microempresas e 3,1 milhões de cadastros de microempreendedor individual (MEI). Para o Ministério da Economia Brasileira (BR 2022) sete em cada dez empresas ativas no Brasil em 2022 são MEIs. De acordo com o GEM de 2022, 77 % dos empreendedores começaram seu negócio para ganhar a vida e porque não havia emprego. O SEBRAE (2022) aponta que no primeiro semestre de 2022 o Brasil atingiu o recorde de donos de negócios, cerca de 10 milhões de mulheres e 19 milhões de homens com novos negócios. O mesmo SEBRAE (2021) aponta que entre os anos de 2018 e 2021, a taxa de mortalidade, após 5 anos de atividade entre os pequenos negócios considerados microempreen-dedores individuais -MEI-, foi de 29 %. Entre os motivos apontados na pesquisa para esta taxa, estão o planejamento deficiente e a falta de preparo dos empreendedores.
Assim, no contexto de novas pessoas se tornando empreendedoras no Brasil há também a demanda por conhecimento sobre e investimento nas pessoas empreendedoras para dar suporte aos pequenos negócios. Esse suporte é necessário visto que 72 % dos empregos gerados no Brasil no primeiro semestre de 2022, foram de pequenos negócios e contribuíram com 30 % do PIB nacional (SEBRAE 2022). Talvez o autoemprego seja a única forma de sobrevivência dessa população no contexto de desemprego e desaceleração econômica, conforme abordado acima, até que os governos consigam avançar em suas economias e modificar essa realidade.
No âmbito acadêmico há conhecimento sendo produzido sobre o em-preendedorismo de oportunidade, de necessidade e social, no entanto, há menos conhecimento sobre o pequeno empreendedor que se vira e faz uso das brechas do sistema, sem o conhecimento sistemático de administração ou empreendedorismo, para realizar sua forma de empreender ou se autoempre-gar. A razão acima é o principal motivo da escolha dos três autores -Souza Neto, Carrieri e Sarastathy- para este trabalho. Todos olham para as diferentes lógicas de empreender, que podem ser úteis ao pensar no acompanhamento de pequenos negócios no país.
Nós observamos que nas condições mencionadas acima, empreender socialmente é socialmente inovador, uma vez que pressiona o contexto institucional (Haxeltine et al. 2016), resolvendo problemas que não interessaram ao Estado ou ao mercado, pelas condições vulneráveis do contexto. Segundo Austin, Stevenson e Wei-Skillern (2012) um dos objetivos do empreendedor social está relacionado ao conceito de valor social à sociedade e não apenas a criação de valor financeiro. Para Ferretti e Souza (2022), empreendedores sociais podem se envolver com atividades que geram lucro, desde que este não seja seu objetivo principal.
Neste trabalho tentamos caracterizar um tipo de empreendedor/inovador social que mistura a sua necessidade, a sensibilidade em relação ao contexto socioambiental, a imersão na realidade que quer mudar (mesmo quando esta mudança se limita à fome) e o modelo de negócio, bem como suas tomadas de decisões: o empreendedor de encruzilhada (Afonso y Sarayed-Din 2023), aquele que opera pelas brechas do sistema e das estruturas, num cenário de incertezas e vulnerabilidades. Isso será feito a partir da análise do resultado de uma revisão integrativa de literatura, realizada em 2022, onde encontramos estudos que já apontam aspectos que vemos reunidos em empreendedores de encruzilhada. De acordo com Snyder (2019) esta revisão é indicada para uma coleta de dados mais criativa, quando o objetivo da revisão pretende combinar diversas perspectivas e insights de diferentes campos para gerar novos conhecimentos e criar referenciais teóricos. Trabalharemos com as teorias do virador (Souza Neto 2003), effectuation (Sarasvathy et al. 2008) e da gestão ordinária (Carrieri et al. 2014). Os empreendedores que serviram de base para este estudo são acompanhados pelas pesquisadoras em projetos de extensão e consultoria desde 2020, mas as pesquisadoras trabalham com empreendedores periféricos há 15 anos, no RJ.
Acreditamos que conhecer e caracterizar este tipo de empreendimento/ empreendedor, que inova socialmente e resolve questões que ainda não foram resolvidas pelo Estado e/ou pelo mercado, possa colaborar para suporte e políticas públicas que estimulem um tipo de empreender que já é realidade e não se encaixa perfeitamente em nenhum dos cânones da administração, da inovação e do empreendedorismo. O que é proposto é uma ampliação de olhar.
Inovação social e empreendedorismo de oportunidade, de necessidade e social
De acordo com Juliani (2014) a inovação social ou socioambiental é uma maneira nova e efetiva de resposta aos desafios enfrentados pelo mundo de hoje. Um campo em que não há limites e que pode ser desenvolvido nos setores público, privado, com e sem fins lucrativos e que as iniciativas mais efetivas ocorrem quando existe a colaboração entre os diferentes beneficiários. A inovação social se volta para os interesses dos grupos sociais e da comunidade e se apresenta como uma resposta nova a uma situação social julgada não satisfatória, visando o bem-estar dos indivíduos e da coletividade através do atendimento a necessidades como saúde, educação, trabalho, transporte e turismo.
De acordo com Ferreti e Souza (2022), o empreendedorismo é visto como um fenômeno individual, baseado na lógica de mercado, no qual os indivíduos possuem características que os tornam diferenciados na criação de valor, crescimento econômico e inovação. Por uma perspectiva mais ampla também pode criar oportunidades sociais.
O empreendedor que inicia um negócio porque observou uma possibilidade e que passa a produzir bens e serviços com o foco no alcance da vantagem competitiva, pode ser denominado de empreendedor de oportunidade. É aquele cuja medida de desempenho é o lucro e que visa satisfazer as necessidades dos clientes e ampliar as potencialidades dos negócios (Silva 2018).
O empreendedor que decide abrir um negócio por não ter emprego, por ter sido demitido ou não conseguir se colocar/recolocar no mercado de trabalho é o empreendedor de necessidade. É aquele que resolve empreender buscando fonte de sobrevivência, na urgência de ganhar o dinheiro suficiente para cobrir os custos de vida (Souza Neto 2003).
Os empreendedores que visam não apenas a criação de um valor financeiro para seus acionistas, mas que procuram soluções a partir de ações que defendam a inclusão social e o enaltecimento de pessoas e afazeres que são negligenciados pelo mercado e Estado (Barbalho e Uchoa 2019), esses podem ser denominados como empreendedores sociais. Uma vez que as estruturas existentes são incapazes de solucionar os problemas envolvendo as desigualdades sociais, questões climáticas, sanitárias e de doenças crônicas, entre outras, crescem iniciativas que buscam alternativas viáveis para ultrapassar as dificuldades da sociedade (Juliani 2014).
Segundo Arrueta e Ribeiro (2022), o desempenho das organizações sociais possui extrema relevância no combate à pobreza, por exemplo, tendo em vista que são sujeitos de criação de capital social, na mesma proporção que provocam novos caminhos e possibilidades para a gestão social. A concepção do empreendedorismo social carrega em si o conceito de inovação, mostrando que podem não ser uma réplica de modelos prévios ou já existentes, mas algo inédito (Ferretti y Souza 2022).
As inovações sociais chamadas de encruzilhada podem ocorrer nos interstícios do sistema institucional, casos de empreendedorismo que são movidos pela vontade dessas pessoas comuns de sobreviver/resolver os desafios prementes de suas vidas cotidianas. Essas experiências estão encontrando novas agências e arranjos institucionais como forma de garantir tanto suas iniciativas quanto o impacto social desejado. Em vez de ancoradas por leis, normas e formas de mercado, essas novas formas de fazer, enquadrar, organizar e conhecer são fundamentadas em outros tipos de vínculos de credibilidade: novas relações sociais a pressionam de alguma forma, quando não substituem, o contexto institucional (Haxeltine et al. 2016). Em outras palavras, tais inovações de base são ancoradas em diferentes estratégias como redes sociais (capital social) e tecnologias de baixo custo.
Empreender em Souza Neto, Carrieri e Sarasvathy: elementos para a inovação social de encruzilhada
Nesta seção são trazidas as principais ideias cujos elementos compõem e fundamentam a ideia do empreendedor/inovador e do empreender/inovar de encruzilhada. São elas a ideia de virador de Souza Neto (2003), a gestão ordinária de Carrieri (2014) e a lógica effectuation de Sarasvathy (2008). Esta revisão foi realizada buscando, nas teorias destes autores, aproximações com aspectos do contexto dos negócios de periferia com os quais os autores deste artigo estão em contato constante e com formas de decisão e visões que, por motivos diversos, se afastavam do que é considerado convencional da administração.
Segundo Souza Neto (2003) seu virador é o empreendedor na condição brasileira, que caracteriza um pequeno empreendedor que se vira para sobreviver com o empreendimento próprio. Na luta diária pela sobrevivência cria meios de se lançar no mercado, identificando oportunidades de sobrevivência e desenvolvendo características próprias e complexas de adaptação ao mundo empreendedor.
Já Carrieri (2014) fala sobre a gestão ordinária, também fruto do empreendedor cotidiano, ação de um homem comum que tem sua forma de organizar seu negócio bem como suas estratégias de sobrevivência.
Sarasvathy (2008) apresenta um modelo de desenvolvimento de um negócio a partir da lógica da racionalidade effectuation, que aqui chamaremos de efeitual e, não, a causal, como comumente vemos nas teorias da administração.
Durante o processo de construção da Administração no século XX, modelos de gestão foram sendo construídos objetivando conduzir as organizações a gestão de excelência no que se refere à prática de organizar. Nesse contexto, o gerencialismo foi legitimado como modelo hegemônico onde o ambiente organizacional é estruturado de forma rígida e formal, com divisão hierárquica de cargos e tarefas e, também, ferramentas de controle de produtividade. Essa instituição do modelo de gestão de perspectiva gerencialista atende uma visão funcionalista das organizações que busca determinar e padronizar os procedimentos organizacionais julgados adequados desconsiderando que essa padronização é incompatível com a diversidade nas organizações (Carrieri, Perdigão e Aguiar 2014).
Nos três casos vemos ideias que se diferem do que é comumente difundido, que levam em consideração quem são os empreendedores, seus conhecimentos, seus contextos e experiências em relação ao que se propõem a fazer. De uma forma geral, estes autores mostram que seus empreendedores não se enquadram na perspectiva gerencialista, mas que são capazes de se desenvolverem e as suas atividades, extrapolando a perspectiva tradicional da administração.
a) Empreendedor à brasileira: o virador-Souza Neto
Bezamat de Souza Neto é Professor Associado do Departamento de Ciências Administrativas e Contábeis da Universidade Federal de São João Del-Rey, seu foco de estudo é no empreendedorismo de interesse social, atuando principalmente com educação empreendedora, comportamento empreendedor e no empreendedorismo à brasileira que será mais bem apresentado nessa seção.
Souza Neto (2003, 24) em sua tese de doutorado norteada pelo autor Guimarães Rosa com o intuito de "inventar para sugerir" faz sua travessia pelo empreendedorismo na condição brasileira. Seguindo o rumo de sua travessia modesta e pretensiosamente empreendedológica -palavra criada pelo próprio autor, para compor a "matriz teórica local" (104) que referenciou o empreender na condição brasileira-, o "virador", é o brasileiro ou brasileira que reproduz os traços ambíguos da sociedade: "todos nós de alguma maneira nos viramos" (247). Ou seja, para o autor, os brasileiros transformam suas desvantagens em trunfos, manipulados pela criatividade e inovação.
Souza Neto afirma que o virador é um microempresário-de-si-próprio e é, ele mesmo, a sua própria empresa. Sonha e busca realizar o seu sonho se relacionando com o mundo e com as pessoas através do trabalho e precisa estar vivo para demonstrar seu êxito na esfera pública, sobreviver. Os viradores são empreendedores de pequeno e médio porte com atividades normalmente em comércio, serviços e produção que administram o seu próprio capital e costumam ter poucos recursos financeiros para desenvolver suas atividades.
Não há separação entre o local de trabalho e de moradia -como a empreendedora Maria da Glória, estudada pelo autor, que fabrica as bonecas em sua própria casa e será melhor apresentada adiante-, ou a localização de sua produção não é definida -como por exemplo, os ambulantes, como no caso do flanelinha1 que criou a sua própria empresa e será melhor caracterizado à frente. Em geral, quando têm empregados, são menos de cinco pessoas, e geralmente são familiares ou "assalariados" não registrados-no Brasil, para ser caracterizada como microempresa deve-se empregar até nove pessoas no comércio ou serviço (BR 2006). Ainda segundo o autor, esses negócios não têm acesso ao sistema formal de crédito estando a situação financeira do negócio fortemente vinculada à situação financeira familiar, com um único "caixa", ou seja, o fluxo de caixa do empreendimento se mistura com o fluxo de caixa da família, não havendo separação entre negócio e família. Normalmente vendem ou fornecem seus serviços para os setores mais pobres da economia que possuem mercados mais dispersos, menos exigentes e com transações financeiras executadas de maneiras diversas, como na venda em troca de tíquetes alimentação, vales transportes ou cheques pré-datados.
Segundo Souza Neto (2003), a produção acadêmica apresenta de forma recorrente a ideia de que tanto a ida do virador para o empreendedorismo -formalização-, quanto o fato de não estar empregado, são resultados da impossibilidade de permanecer no mercado formal. O autor contra-argumenta com três motivos principais para a crescente opção por abrir um novo negócio: a alteração da situação de segurança e estabilidade antes existente nas empresas privadas (ou até mesmo públicas) e que vem se perdendo ao longo dos anos; a disseminação da valorização do trabalho por conta própria na sociedade com as vantagens (materiais e simbólicas) de controle sobre o tipo e acesso integral aos frutos do trabalho; e, a existência de possibilidades concretas -objetivas ou subjetivas- do próprio negócio.
Souza Neto (2003) evidencia alguns conceitos e definições do mainstream do empreendedorismo remetendo-os ao virador. Segundo a definição de Bygrave (1998 33 apudSouza Neto 2003), utilizada pelo autor, o empreendedor é "alguém que percebe uma oportunidade e cria uma organização para lutar por ela", cabendo, segundo ele, perfeitamente, para o modelo do virador. Como exemplo, ele traz a história do flanelinha que criou uma empresa móvel que através de leitura de jornais, pesquisava eventos como festas, aulas inau gurais ou casamentos, ou seja, eventos aonde muitas pessoas iriam de carro e, provavelmente, não haveria ninguém para organizar o estacionamento nas ruas próximas. Nestes casos, evidencia o autor, o virador se desloca para o local e oferece seus serviços, organizando "tudo direitinho" (43), nas palavras do próprio empreendedor. Assim, eles buscam oportunidades nas festas, coquetéis e etc., mas não se movem pelo racional de busca de oportunidades a partir de planos, projetos e previsões mercadológicas -assim como em Sarasvathy-, mas sim pela necessidade e um outro empreender.
Drucker (1993 apudSouza Neto 2003), aponta três traços importantes no perfil de um empreendedor: a criatividade, a insatisfação com o status quo e a determinação pessoal. O virador é um sujeito no qual a criatividade permeia todo o seu empreender. Já na determinação pessoal, esses empreendedores teriam pleno conhecimento de si, ou melhor, de suas desvantagens, por isso reconhecem que o que os move é a necessidade e não o esforço de se fazerem pessoas melhores. Nas palavras do próprio Souza Neto (2003, 248) "o que os move é a necessidade, daí: cobra que não anda não engole sapo! Simplesmente isso". Em relação a insatisfação com o statu quo ela pode ser conhecida pelos viradores como indignação. O exemplo trazido por Souza Neto é o caso da professora de educação física Maria da Glória, uma mulher negra que em sua infância teve suas bonecas, negras, produzidas pela mãe e pelas tias. Quando se tornou mãe, ela não tinha tempo para costurar as bonecas das filhas que questionaram por que todas as suas bonecas eram brancas. Essa indignação fez com que Maria da Glória pintasse as bonecas de tons pretos e as vestisse com roupas de tecidos africanos para as filhas. Com isso, outras pessoas viram e se interessaram pelas bonecas e, com um cheque pré-datado, emprestado por um tio, ela comprou mais bonecas e começou a vender para a vizinhança e outras pessoas na escola que trabalhava, transformando a sua indignação em um negócio.
Souza Neto compreende que o virador é antes de tudo um inovador, referindo-se a Schumpeter; porque, muito em função da absoluta falta de recursos, o virador assimila e recombina tudo o que acessou ou conhece de forma extremamente criativa, destruindo e construindo novas coisas, criativamente.
Logo, pode-se dizer que o virador tem forte predisposição pessoal para o movimento, com uma visão afirmativa sobre o futuro e com condições próprias para enfrentar os fatores adversos do meio. É insistente e persistente em sua luta pela sobrevivência e embora excluído da sociedade com tantas normas, modelos, tipologias, regras e imposições ele resiste e, constantemente, "dá a volta por cima, e rindo, vai à luta" (Souza Neto 2003, 251).
b) Negócios comuns de homens comuns: gestão ordinária - Carrieri
Alexandre de Pádua Carrieri é Professor Titular no Curso de Administração da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais e tem sua expertise na área de Estudos Organizacionais. Em sua carreira optou pelo olhar para o que era estranho ao mainstream da administração, estudando os pequenos negócios, sujeitos do cotidiano e a gestão que acontece no dia a dia das pequenas organizações. A partir desses estudos propôs a gestão ordinária.
A gestão ordinária é o olhar para os negócios que não se enquadram numa visão gerencialista2 das organizações e explora o modo como esses negócios são capazes de inovar, extrapolando os limites das organizações tradicionais, que ignoram elementos considerados menores como a espontaneidade, o não planejamento e a improvisação dentro do meio organizacional (Carrieri, Perdigão e Aguiar 2014). Segundo estes autores, a gestão ordinária não corresponde a um modelo de gestão, com parâmetros, procedimentos e diretrizes predeterminadas a serem seguidas para o atingimento de objetivos organizacionais, mas, sim, uma forma de olhar, de perceber, de analisar e de reconhecer outras maneiras de gerir pequenos negócios familiares, com o uso da intuição, da criatividade, do instinto de sobrevivência, das emoções e dos sentimentos mais próximos de uma racionalidade substantiva (Carrieri et al. 2018).
Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014) definem o gestor ordinário como uma pessoa comum que construiu suas práticas organizativas a partir da experiência cotidiana no trabalho, aprendendo com erros e acertos. São sujeitos comuns que usam do conhecimento popular e do cotidiano para realizar suas próprias práticas de organização das atividades comerciais de seus empreendimentos de pequeno porte (Carrieri et al. 2018).
Os mesmos autores, no estudo de caso da Cafeteria Will Coffee expõem através da metodologia Canvas, o modo como inúmeros negócios são efetivamente pensados e colocados em prática no Brasil: na contramão de modelos prescritivos. O ponto a ser defendido remonta à impossibilidade de adequar o caso de empreendedorismo da Cafeteria Will Coffee ao mero proceder da metodologia Canvas. Busca-se provar que o empreender executado por esses atores -a chamada gestão ordinária-, extrapola em sua complexidade o mainstream management.
A pesquisa explica os motivos que levaram um casal a empreender uma cafeteria em sua própria casa, mais especificamente, no quarto do casal. A decisão não é precedida por nenhum estudo técnico, Will e sua esposa estavam insatisfeitos com suas profissões e enfrentavam problemas financeiros. Will tinha a apreciação do café como um hobby e pautou nisso a sua decisão de empreender. Nunca havia exercido qualquer atividade econômica relacionada ao café. Não tendo recursos para investir, necessitou improvisar, se virar como diria Souza Neto e, no próprio quarto onde dormia, instalou uma pia, comprou materiais de construção e ele próprio construiu o balcão de atendimento, utilizando, no início, a própria cafeteira que tinha em casa. Indo na contramão dos conselhos e expectativas de seus familiares sobre o sucesso do empreendimento, que a princípio acreditavam não ter as características adequadas dado o local e o público da região, construíram um local plural capaz de atrair "cultura, música, negócio, comemoração, debate, público acadêmico, professores e estudantes" (Carrieri et al. 2018, 7).
O caso da cafeteria Will Coffee demonstra aspectos importantes da gestão ordinária como o não planejamento do negócio, a falta de segmentação de mercado e um predomínio da espontaneidade e prática comum, do improviso, do "fazer com o que se tem em mão; do compartilhamento de conhecimento; do agir e do responder ao ambiente sem planejamento prévio; com tempo estendido de dedicação aos clientes e parceiros; a não adoção de protocolos e procedimentos pré-estabelecidos; a não análise de mercado; uma gestão não orientada por modelos e pela produtividade; a presença da afetividade; da razão substantiva; a valorização da intuição" (Carrieri et al. 2018, 11).
Assim, é defendido por Carrieri et al. (2018) que se deve levar em consideração os fatores históricos, sociais, culturais e identitários que diferenciam os sujeitos e, na prática cotidiana, pluralizam a gestão. Para além da subversão à lógica de produtividade infindável trazida pelo capitalismo, que prevê o domínio do gerencialismo em detrimento de outras formas de organizar, a gestão ordinária explora de que modo este olhar cotidiano contribui para a compreensão das táticas utilizadas pelo homem comum, na gestão do seu negócio. Com isso, "aprender a gestão ordinária empreendida pelo sujeito comum é interpretar, nos inúmeros discursos dispersos, as estratégias e táticas de sobrevivência e resistências no cotidiano dos tidos como pequenos" (Carrieri, Perdigão e Aguiar 2014, 4).
A compreensão da gestão a partir do cotidiano, com foco no modo como espaços e agentes se relacionam, traz à tona o fenômeno da significação, extremamente caro à proposta da gestão ordinária. Valoriza-se, neste âmbito, as diferentes formas individuais que cada sujeito desenvolve de ver o mundo, sentidos e significados por ele atribuídos (Carrieri, Perdigão e Aguiar 2014). Tal perspectiva endossa, portanto, a noção de que "a realidade das organizações não pode ser apreendida por abordagens, pois a realidade social é permeada de contradições e reconhecer realidades particulares é reconhecer a diversidade" (Carrieri, Perdigão e Aguiar 2014, 708).
c) A tomada de decisão para futuro incerto: racionalidade efeitual - Saras Sarasvathy
Saras Sarasvathy é indiana, pesquisadora, autora e professora da Universidade da Virgínia (EUA). É estudiosa do empreendedorismo e criadora dos princípios do modelo Effectuation, que chamaremos também de efeitual.
Para compreender as características que tornam indivíduos efetivamente empreendedores, Sarasvathy realiza uma jornada por dezessete estados norte-americanos, a fim de investigar se existe um modo de pensar comum quando se decide criar uma empresa, o que a permite analisar e sistematizar racionalidades distintas, que observa estarem presentes por trás do pensamento de empreendedores renomados.
Em seus estudos, a autora define cinco metaprincípios dessa racionalidade: bird in hand (pássaro na mão); affordable loss (perda acessível); crazy quilt (colcha maluca); lemonade (limonada); e, pilot in the plane (piloto no avião).
No pássaro na mão, o empreendedor inicia seu negócio de onde está e usando o que tem em mãos. O princípio de perdas acessíveis corresponde à suposição de perdas que eles podem administrar, com os recursos de que dispõem e, também, o máximo de tempo possível para se dedicar àquela atividade sem retorno financeiro, ao contrário do que comumente vemos que é o investimento financeiro necessário ao empreendimento. A colcha maluca fala sobre parcerias que podem acontecer com possíveis apoiadores de forma a reduzir riscos e, concomitantemente, construir um mercado para os negócios. A limonada corresponde à ciência do futuro imprevisível e da possibilidade do erro, considerando que o erro pode se configurar como aprendizado e novas oportunidades. Por fim, o piloto no avião representa a convergência com a lógica efeitual, em que oportunidades são criadas no presente, com o objetivo de construir um futuro possível e incerto.
O caso da rede de lojas americana Starbucks exemplifica os metaprincípios da racionalidade empreendedorial de Sarasvathy. Este caso começa com Howard Schultz observando os baby boomers que estavam rejeitando alimentos embalados e processados em detrimento de uma alimentação mais natural e, também, estavam mais interessados em um atendimento de qualidade. Mas, por outro lado, o consumo de café nos Estados Unidos vinha diminuindo há 20 anos e na fundação da Starbucks original, ela não vendia nenhuma xícara de café, mas sim grãos torrados de alta qualidade, chá, temperos e suprimentos. Assim, não houve uma análise de mercado, ou um protótipo de sucesso para ajudar Schultz a descobrir a oportunidade de mercado para a criação da Starbucks (Sarasvathy et al. 2008).
A primeira loja da Starbucks foi um bar café chamado II Giornale fundado por Schultz e que o sucesso está fortemente atrelado à ação do empreendedor. Ele e sua equipe escutaram atentamente os clientes e descobriram que eles não gostavam de música clássica durante todo o tempo, queriam um lugar para sentar e um cardápio escrito em italiano não os agradava. Os funcionários também não achavam prático trabalhar de gravata borboleta, pois não conseguiam manter a aparência arrumada no final de um dia servindo café expresso. Logo, Schultz considerou cada uma dessas questões, e ajustou muito das políticas operacionais em resposta ao feedback de clientes e funcionários. Outro fator interessante é que o empreendedor tentou obter financiamento com 242 pessoas e, destas, 217 optaram por não financiar a empresa. O peso da evidência estava contra ele, mas ele tinha apoio suficiente para indicar que suas ações não eram aleatórias ou irracionais (Sarasvathy et al. 2008).
Através do exemplo da Starbucks é possível observar que os empreendedores não esperam para descobrir a oportunidade perfeita, mas em um processo dinâmico de identidade, conhecimento e rede, começam com quem são, o que sabem e quem conhecem e agem de acordo com o que podem fazer, sem se preocupar muito com o que deve ser feito. Ou seja, dão ênfase a eventos futuros que podem controlar, em vez daqueles que poderiam prever (Sarasvathy et al. 2008).
A proposta de Sarasvathy (2001) aborda uma lógica de pensamento diferente do tradicionalmente defendido pelo mainstream management. Nos modelos tradicionais de empreendedorismo, as ações são baseadas no pensamento linear, no qual um futuro é idealizado e a partir de então é elaborado um plano que determina como, aonde e quando chegar lá. Somente após esse processo é que a ação ocorre e o plano é colocado em prática. Mas, o autor afirma que não é possível prever/predizer o futuro e estuda como empreendedores tomam decisões com a perspectiva de um futuro incerto.
Em um contexto no qual o tempo e os recursos são escassos, os empreendedores desenvolvem estratégias e constroem, pouco a pouco, o futuro, à medida que o processo acontece. O effectuation se volta para avaliar os recursos disponíveis e criar os objetivos de curto prazo a partir deles. Segundo esta lógica, os empreendedores não partem de um objetivo específico, mas, sim, permitem que os objetivos surjam ao longo do tempo, sobrepostos às ações e através das relações que estabelecem e das ideias delas decorrentes, com pessoas que, de alguma forma, são envolvidas na iniciativa.
Sarasvathy (2008, 2) denomina effectual reasoning, que pode ser traduzido como racionalidade efeitual, "uma lógica coerente que claramente estabelece a existência de uma forma distinta de racionalidade a qual todos nós temos reconhecido intuitivamente como 'empreendedora' durante muito tempo". A autora diferencia essa lógica em detrimento do que chama de causal reasoning, que pode ser traduzido livremente em português como racionalidade causal e refere-se à abordagem usualmente adotada pelas instituições de ensino e pelo mercado, na qual se parte do princípio do alcance de metas e, a partir disso, do desenvolvimento de um planejamento de negócio cuidadosamente elaborado. A autora explica "a racionalidade causal se inicia com uma meta pré-determinada e um dado conjunto de recursos, e busca identificar a alternativa ótima -mais rápida, barata, eficiente, etc.- para alcançar determinada meta" (Sarasvathy 2008, 2).
Para Sarasvathy, a grande diferença entre a lógica efeitual e a causal reside no fato de que "enquanto a racionalidade causal pode ou não envolver o pensamento criativo, a racionalidade efeitual é inerentemente criativa" (Sarasvathy 2008, 3).
O inovador/ empreendedor de encruzilhada: uma caracterização possível
Os três autores com os quais trabalhamos neste artigo dedicam suas pesquisas a identificar outras formas de organizar, empreender e/ou inovar que ainda não estão em perspectiva na administração e, como consequência, não são formas reconhecidas, visíveis, muito estudadas ou aceitas por patrocinadores, financiadores, apoiadores, instituições de ensino, de fomento, decisores de políticas públicas e outros dinamizadores do ecossistema dos nano e microempreendedores ou mesmo de startups de periferias.
São muitas as semelhanças identificadas nestes estudos e no comportamento, no processo e nas formas de empreender dos inovadores sociais de periferia, que aqui chamamos de inovadores sociais de encruzilhada.
Nesta seção, nos dedicamos a identificar e distinguir estas semelhanças e, mesmo, o entrelaçamento entre aspectos dos estudos dos três autores -Souza Neto, Carrieri e Sarasvathy-, de maneira a desenharmos uma caracterização possível destes atores e de suas formas organizativas.
Afonso e Sarayed-Din (2023) baseiam-se na experiência de projetos, pesquisa, extensão universitária e imersão de cerca de 15 anos nestes territórios observando, dando apoio e aprendendo com estas organizações, para afirmarem que estas são típicas criações desenvolvidas por populações vul-nerabilizadas, em que empreendedores são pessoas comuns, movidos pela vontade de sobreviver e resolver os desafios cotidianos. Afirmam ainda que estes empreendedores/ inovadores sociais criam soluções únicas, que quase sempre resolvem problemas causados pela (falta de) estrutura naquele contexto/ território, suas consequências e como forma de superar a falta de acesso à direitos fundamentais e a bens e serviços.
O conceito de inovador social de encruzilhada surgiu primeiramente a partir da junção do virador (Souza Neto 2003) e da educação de encruzilhada (Rufino 2019), aos poucos acrescentando elementos dos estudos de Carrieri e Sarasvathy que olharam para empreendedores e empreendimento alargando o olhar mais tradicional tanto das teorias de organização ou administração, quanto das formas de ensinar a empreender. As autoras afirmam que as experiências que estudaram de inovação social partiram de um empreendedorismo 'à brasileira', inovaram e encontraram alternativas para a redução de vulnerabilidades sociais e, consequentemente, impulsionando um desenvolvimento local mais sustentável; afirmavam ainda que as inovações que observavam eram 'invenções paridas nas fronteiras e nas brechas que sobraram' para as populações vulnerabilizadas (Rufino 2019, 1), não seguiam o modelo canônico dos planos de negócios ou da racionalidade causal e eram um tipo de gestão acionada por pessoas comuns em negócios comuns. Para as autoras, estas atividades são, então, inovações sociais na medida em que são atuações coletivas, que ocorrem por meio de novas formas de estes atores se relacionarem, que geram novas formas de organizar, enquadrar, conhecer ou aprender que pressionam o contexto e às vezes o substituem (Haxeltine et al. 2016).
O empreendedor de encruzilhada é o empreendedor que inova socialmente inventando ações nas brechas existentes no sistema e funcionam como formas de transgressão/ contestação das instituições estabelecidas, gerando resultados tanto para a sua própria sobrevivência, como para a sobrevivência de coletividades.
As autoras defenderam (2021; 2023) que as inovações sociais de encruzilhada do Brasil são motores para mudança social, abrindo caminhos para modelos alternativos de futuros com foco no desenvolvimento local sustentável e na melhoria da qualidade de vida das populações vulneráveis.
a) Elementos de caracterização do inovador social de encruzilhada
Embora os autores estudados tenham trabalhado suas teorias e modelos com empreendedores distintos do que estamos chamando de empreendedor/ inovador social de encruzilhada, o que trazemos aqui são as semelhanças entre elementos/aspectos/formas de agir e de organizar, que observamos nestes autores e que servem para a caracterização dos empreendedores que sofrem vulnerabilidades interseccionais, como os que estamos estudando: são de territórios vulneráveis (favelas e arredores), de classes socioeconomicamente baixas; maioria preta, muitas mulheres, entre outros aspectos. Ou seja, o empreendedor de encruzilhada não se encerra nos elementos que trazemos neste estudo.
Com o objetivo de retratar estes elementos construiu-se o quadro 1 a partir das teorias dos autores Souza Neto (2003), Carrieri (2014) e Sarasvathy (2008) para caracterizar o que Afonso e Sarayed-Din (2023) observam em suas pesquisas (2021; 2023). Em seguida traçamos uma breve análise desta caracterização.
Empreendedor de encruzilhada | Autores | Elementos |
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Moradores de favelas e arredores da cidade do Rio de Janeiro, das camadas mais pobres da população, com baixo acesso à educação formal. Muitas mulheres chefes de família. Empreendem em rede, com familiares, vizinhos, parentes e mesmo quando o fazem sozinhos, geram oportunidades de trabalho para os próximos. São absolutamente hábeis em recombinar os escassos recursos aos quais têm acesso. | Souza Neto (2003, 245) -"virador, daquele que se vira. E ao se virar, aquele que permanece indivíduo num mundo de pessoas na materialização mais brasileira possível de uma outra possibilidade de inclusão social através de um (ou vários!) trabalho cuja realização é permeada de criatividade/ improvisação e que aponta, invariavelmente, para as já aludidas "perplexidades produtivas". Por outro lado, como ele, para sobreviver nessa ambiência, no geral, burla normas, dá um jeito e se vira". Carrieri et al. (2018, 707) "As pessoas, os sujeitos da pesquisa, construíram suas práticas organizativas a partir de experiências no cotidiano do trabalho, do exercício de suas atividades cotidianas, aprendendo com erros e acertos". Sarasvathy (2008, 23) "Os efetuadores raramente veem as oportunidades como dadas ou fora de seu controle. Na maioria das vezes, eles trabalham para fabricar, bem como reconhecer e descobrir oportunidades [...] Os efetuadores geralmente têm uma visão instrumental das empresas e dos mercados. Eles não agem como se fossem os agentes da empresa ou como fornecedores atendendo à demanda -as empresas são uma maneira de criar novidades valiosas para si e/ou para o mundo; é mais provável que os mercados sejam feitos do que encontrados; e uma variedade de partes interessadas, incluindo clientes, são parceiros em uma aventura criada por eles mesmos". | Empreendedor e maneira de empreender |
No mesmo local da residência ou sem local fixo, pelo menos no início do empreendimento. Muitos negócios são online, suportados por uma página no Instagram para dar visibilidade e WhatsApp para gerenciamento da equipe (quando há) e contato com clientes | Souza Neto (2003, 238) "Dentro dessas 'pequenas unidades econômicas' não existe divisão de trabalho e a maioria funciona no próprio local de residência, ou em instalações pouco sólidas, ou ainda, não têm localização definida -os ambulantes". Carrieri et al. (2018, 6) "A cafeteria poderia ser montada ali onde era o próprio quarto do casal". | Vida profissional e vida pessoal |
Micro e pequenas soluções para o cotidiano de moradores de periferia (como os exemplos citados no artigo) | Souza Neto (2003, 237) "Funcionam de maneira independente ao administrar seu próprio capital e incluem atividades de comércio, serviços e produção". Carrieri et al. (2018, 2) "Estes indivíduos geram e usam o chamado conhecimento popular, com suas práticas próprias de organização de atividades em seus empreendimentos comerciais de pequeno porte". | Atividades organizativas |
Criam meios de entrar e permanecer no mercado, identificam oportunidades de sobrevivência e, não necessariamente, de negócios e gerem as atividades por meio do conhecimento comum e cotidiano, do afeto e da emoção, da paixão de conseguir superar o problema. São criativos e pouco conhecem das teorias de administração -ao menos no início de suas atividades | Souza Neto (2003, 246-247) "O traço virador -a viração- do brasileiro se manifesta tanto no lícito quanto no ilícito, ou melhor, em atitudes ou atividades a partir, principalmente, de instituições/ organizações formais/informais (ou informais/formais): paralegais". Carrieri et al. (2018, 4) "uma forma de olhar, de perceber, de analisar e de reconhecer outras formas de gerir pequenos negócios familiares, com o uso da intuição, da criatividade, do instinto de sobrevivência, das emoções e dos sentimentos mais próximos de uma racionalidade substantiva". Carrieri et al. (2018, 7) "o não planejamento, a não segmentação de mercado, a entrega à intuição e a afetividade como vínculo com seus possíveis clientes". Carrieri et al. (2018, 3) "Partimos do conceito de gestão ordinária, exercida pelos sujeitos comuns e suas estratégias e táticas cotidianas de sobrevivência". | Lógica de empreendimento/ práticas organizativas |
Sarasvathy (2001, 9) "Os empreendedores são empreendedores diferenciados dos gerenciais ou estratégicos, porque pensam com eficácia; eles acreditam em um futuro ainda a ser feito que pode ser substancialmente moldado pela ação humana; e eles percebem que, na medida em que esta ação humana pode controlar o futuro, eles não precisam gastar energias tentando predizê-lo. De fato, na medida em que o futuro é moldado pela ação humana, não adianta muito tentar prevê-lo -é muito mais útil entender e trabalhar com as pessoas que estão engajadas nas decisões e ações que o fazem existir". | ||
São empreendedores sem acesso ao crédito formal. Não há separação entre a gestão financeira do negócio e pessoal. Gerenciam os negócios no improviso e não através de teorias de organização, seja por falta de acesso ao conhecimento, ou por falta de alinhamento com as crenças e exigências da administração | Souza Neto (2003, 237) "Além disso, costumam ter poucos recursos financeiros para desenvolver suas atividades de maneira eficiente". Souza Neto (2003, 237) "Não tem acesso ao sistema formal de crédito e a situação financeira do negócio está fortemente vinculada à situação financeira da família, existindo um único "caixa", ou seja, o "fluxo de caixa" do empreendimento se mistura com o "fluxo de caixa" da família". Carrieri et al. (2018, 7) "Will não tinha recursos suficientes para investir e necessitou improvisar". Sarasvathy (2008, 237) "Por exemplo, embora os fundadores da Starbucks original não concordassem em converter sua empresa em uma cafeteria no estilo italiano, eles ofereceram a ele dinheiro inicial e conselhos para fundar o Il Giornale. Da mesma forma, dos 242 homens e mulheres que ele abordou para obter financiamento, 217 decidiram não financiar o empreendimento, mas alguns compraram ações". | Gestão financeira e do negócio |
Elaboração própria.
Como em Santos (2019), a periferia discutida no empreendedorismo de encruzilhada, não é geográfica, necessariamente. Ela pode se dar em qualquer local onde haja assimetria de poder (Santos chama de Sul) em relação aos mais privilegiados. Estes, classes média e alta, podem praticar o empreendedorismo de oportunidade, eles têm todos os acessos (educação, direitos, financiamento, articulações, redes e repertório), diferentemente dos periféricos de encruzilhada que têm que achar brechas para empreender e normalmente iniciam o seu empreendimento por necessidade.
Além do mais, os negócios relatados por Afonso e Sarayed-Din (2023) são negócios de impacto ou dinamizadores do ecossistema de impacto que proporcionam pontes para este tipo de empreendedorismo, quando não o são eles próprios e que adquiriram escala, reconhecimento e recursos financeiros.
Necessário esclarecer ainda que Sarasvathy não pesquisou empreendedores pequenos ou de periferia. O que nos interessou nela foi a constatação de que, mesmo em empreendimentos de oportunidade norte americanos que sobreviveram e alcançaram sucesso, os negócios foram geridos com uma lógica diferente das que tradicionalmente a administração admite, incentiva e ensina. A lógica efeitual é uma lógica mais instintiva e intuitiva e é utilizada no início do negócio, mesmo por empreendedores que reconhecemos como tradicionais e parte do mainstream, costumando ser combinada com a lógica causal após o pilot in the plane.
Ao contrário do empreendedorismo declamado como autonomia e ideologia de vida livre, o empreendedorismo de encruzilhada é um autoemprego, pelo menos a princípio e, também, muitas vezes, a única forma de se virar e ganhar o mínimo que sustente os sonhos e a vida. Nesse sentido, é muito comum que estes empreendedores de encruzilhada sejam guiados por uma paixão, por uma vontade de solucionar problemas em sua comunidade -que eles mesmos passam e/ou sofrem- e senso de justiça e pontes para acesso a direitos que muitas vezes não conseguiram experienciar em suas próprias vidas.
Mesmo quando o negócio é pequeno, como citado neste artigo no caso da professora de educação física que produz bonecas negras, a vontade comunitária é grande. Não raro, estes negócios empregam pessoas próximas, como parentes e vizinhos, por uma dupla necessidade: quem faz parte do trabalho (entrega, organização de algum processo ou a parte digital das vendas), mas também, de dar ao próximo oportunidades de ganhar algum dinheiro. Também é muito comum que compartilhem seus conhecimentos com outras pessoas da comunidade.
Alguns dos empreendedores de encruzilhada têm sucesso (que se relaciona a ganhar mais dinheiro do que precisa), escala e reconhecimento, porém não é premissa para eles, é simplesmente sobrevivência. Sobretudo num momento de extrema pobreza, crise econômica mundial e um país a ser reconstruído (no sentido cultural, afetivo, econômico, relacional, público, ambiental, político etc.) como é a marca do ano de 2023 no Brasil.
Essas inovações sociais de encruzilhada nascem das brechas em um modo de transgressão/contestação das instituições estabelecidas e são os motores para mudança social, abrindo caminhos para modelos alternativos de futuros com foco no desenvolvimento local e também fonte de inspiração para a sociedade civil, ONGs, setor privado, e para políticas públicas no Brasil e em outras comunidades do sul global que estejam comprometidas/ interessadas com novas ideias que ajudem na melhoria da qualidade de vida dos territórios.
Outra característica importante é a sua criatividade e inovação para permanecerem no mercado, mesmo não partindo da racionalidade causal e instrumentos de modelo e plano de negócios, se adequam para atingir os objetivos organizacionais "com o uso da intuição, da criatividade, do instinto de sobrevivência, das emoções e dos sentimentos mais próximos de uma racionalidade substantiva" (Carrieri et al. 2018, 4).
Com pouco ou nenhum apoio financeiro esses atores empreendedores usam de seus conhecimentos e experiências em relação ao que se propõem a fazer. Esses negócios se iniciam e podem permanecer como forma de resolução de problemas comunitários mesmo sem apoio governamental ou institucional.
Conclusão e aprendizados
Esse trabalho se apoiou em autores cuja pesquisa tem um olhar diferente das práticas administrativas difundidas no mainstream management como cenário único para a construção de um negócio. Esse caminho foi necessário para caracterizar e entender os empreendedores que começam os seus negócios por necessidade ou por incômodo a situações de vulnerabilidade nas quais estão inseridos. Os inovadores sociais de encruzilhada são empreendedores necessários para mitigar, mesmo que momentaneamente, problemas sociais, ambientais e econômicos nos quais a população vulnerável está inserida e para os quais não há capacidade ou interesse em solucionar.
São empreendimentos que se encontram fora dos padrões da administração e têm crescido no Brasil, por menores que sejam conseguem gerar renda e desenvolvimento em seus territórios e por isso precisam ser notados pela academia, poder público e iniciativa privada.
Para a academia, acompanhar este desenvolvimento é importante, são fenômenos que nos ajudam (e aos governos, articuladores e financiadores) a compreender formas diferentes do empreendedorismo neste momento. Não como ideologia submetida ao "norte", mas como uma epistemologia do sul, uma valorização de saberes importantes que fortalecem a nossa própria cultura, quase sempre desconhecida e muitas vezes mal interpretada pelos olhares do norte. O saber (como aponta Santos), já está nas periferias. A cientificidade do território é completamente adequada ao território e não adequada, necessariamente, ao conhecimento científico mainstream. Os empreendedores inovadores sociais de encruzilhada revelam uma desigualdade social no Brasil e ao mesmo tempo nos apontam uma direção para a saída da atual crise econômica, mesmo no âmbito da capacidade individual de resolver problemas.
Em relação ao empreendedor/inovador social de encruzilhada os principais aprendizados foram: suas soluções são criadas nas brechas do sistema e abrem caminhos para outros futuros possíveis, mais sustentáveis e menos desiguais. Aqui não há romantismo em reconhecê-los como modelos alternativos de desenvolvimento local sustentável, mas necessitamos entender tais experiências e casos como motores para uma mudança social. E, de alguma maneira, olhar para que esses negócios tenham reconhecimento e apoio governamental quando não apoio privado de incentivos financeiros para prosperarem. Também é necessário sair da ideologia do empreendedorismo do plano de negócios, como apontado por Sarasvathy pois mesmo grandes empresas não criam planos de negócios como caminho para seus primeiros passos, ou seja, precisamos pensar em outras formas e/ou exigências para apoio e financiamento aos empreendedores sociais de encruzilhada fora das tradicionais teorias da administração. É preciso criar formas de apoiar institucionalmente e financeiramente os negócios que nascem para resolver problemas sociais e de alguma forma desenvolvê-los para que assim continuem no apoio de suas comunidades e problemas sociais cotidianos e sejam fortes o suficiente para se tornarem modelos de funcionamento baseados nos atores e suas inter-relações com os modelos sociais de encruzilhada.