1. Pensar a pesquisa sobre um corpo pela escrita: um exercício
Investimos nossa ação sobre a escrita num exercício de pensar o pensamento com o texto -tendo-o como um espaço de performance- na espreita de ficções eficazes. Trata-se de produzir imagens que intentam funcionar como intercessoras entre um “eu” e o mundo, como uma verdade potente enquanto criadora de realidades que vitalizem os espaços de pesquisa, escrita e educação - logo, por este meio, a vida. Deste modo, o corpo aparece como uma imagem em jogo com outras, que nos remete à ideia de uma fantasia, conforme nos propõe Barthes (2003, 12):
Uma fantasia (ou pelo menos algo que chamo assim): uma volta de desejos, de imagens, que rondam, que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda, e frequentemente só se cristalizam através de uma palavra. A palavra, significante maior, induz da fantasia à sua exploração. Sua exploração por diferentes bocados de saber = a pesquisa. A fantasia se explora, assim, como uma mina a céu aberto.
Este texto, então, condiciona a possibilidade de uma exploração, na forma de um ensaio, para extrair fragmentos da pesquisa e compor nossa ideia de um Corpo Potencial: trata-se de uma ficção eficaz para pensar a educação, em estrita relação com a pesquisa e o texto. Com efeito, passa-se a perspectivar o cotidiano entendido como uma autoeducação, uma vez que nele nos exercitamos experimentalmente, por uma via performática, e assim nos constituímos. Autoeducação como efeito daquele ou daquela que se modifica pela pesquisa que empreende, pela escrita que põe em curso. Não se trata, todavia, de um exercício ensimesmado, muito pelo contrário, uma vez que a escrita, em estrita relação com a pesquisa e a experimentação, convoca uma coletividade pregressa, ao lidar com o passado que retoma, e uma comunidade futura, a qual se projeta. Quando escrevemos teses e dissertações, pelo exercício solitário da escrita, nos encontramos com outros e outras que nos ensinam, ao mesmo tempo que esperamos ter algo a dizer ao futuro.
Passamos à noção de performance, que aqui é tomada com Carlson (2010, 15), pois o “reconhecer que nossas vidas estão estruturadas de acordo com modos de comportamento repetidos e socialmente sancionados levanta a possibilidade de que qualquer atividade humana pode ser considerada como performance”; projetamos, assim, certos modos de um corpo existir, desviando de condutas que lhe diminuem a potência de agir, à espreita de bons encontros - com ênfase aos imprevistos -; é nesse sentido que suas ações ganham o status de performance, no sentido proposto por Carlson (2010, 15):
A diferença entre fazer e ‘performar’, de acordo com esse modo de pensar, parece estar não na estrutura do teatro versus vida real, mas numa atitude - podemos fazer ações sem pensar mas, quando pensamos sobre elas, isso introduz uma consciência que dá a qualidade de performance.
Isto posto, significa afirmar que ao pensar acerca de um Corpo Potencial, estamos à espreita de nos constituirmos como tal corpo. Para tanto, afirmamos que a individuação de um texto se expressa numa correlação com o indivíduo que o escreve, sem domínio do segundo sobre o primeiro. Assim, tal narrativa, que constitui uma realidade, resulta da performance deste corpo que agencia o que pode, modulando de modo imprevisto um corpo do texto, com a linguagem em jogo. O corpo do autor, como escritor-narrador, então deriva de si mesmo, passando também por acessos intermitentes de individuação, o que trataremos no decorrer do texto com Simondon (2020).
Com efeito, o que aqui se apresenta como um personagem nesta espécie de palco-texto, como um CorPo (grafia doravante adotada para enunciar um Corpo Potencial), é ensaiado insistentemente, performado numa pesquisa-texto, na invenção de corpos possíveis em nossa superfície cotidiana e em espaços de educação, em contextos institucionais e não institucionais. Corpo em atenção dispersa (e treinada) em meio aos labirintos de uma vida à qual se dá sentido numa ficção - isto é, num certo modo de compreender a realidade. Considera-se, por conseguinte, com Deleuze (2002, 25), um certo dinamismo:
Será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém a sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências.
As ações e relações deste CorPo são assim projetadas a partir da ideia de corpos (matéria) em jogo, em encontros da vida num jogar, dum corpo (animal humano) numa estrita relação pensamento-texto, e deste em retorno para a materialidade cotidiana da vida. Não é o caso, portanto, de um objetivo a ser buscado (mesmo que objetivado enquanto invenção de uma busca infindável), pois este corpo não se encontra em um estado definitivo, como se pudesse afirmar: “eis O Corpo Potencial!”, “tenho potência, logo, sou um Corpo Potencial!”; trata-se de um estado de latência, de criações incessantes, derivações em variações, para as quais a educação funciona como uma zona de acontecimentos: espaço-tempo em jogo para a produção de encontros alegres e potencialização dos corpos, estes entendidos enquanto processo, eles mesmos num jogo, como matérias, corpos em encontros com corpos, corpos dentro de corpos, labirintos corporais; pois, “cada corpo, por menor que seja, contém um mundo” (Deleuze, 1991, 16).
Ora, pois, de certo modo, fomos jogados num mundo, e sobre esta condição nos restam duas posturas, conforme nos apresenta Flusser (2011, 55-56):
Continuar caindo passivamente para dentro do mundo das coisas que nos envolve e oprime, caindo em direção à morte, ou podemos virar-nos contra as nossas origens das quais fomos jogados, transformando coisas que nos envolvem em instrumentos que testemunham nossa passagem.
Podemos, assim, projetar-nos. Por essa via as palavras são compreendidas como corpos no texto, que significam o pensamento se realizando, tornando-se realidade no exercício de exploração pela escrita: o pensar é um exercício experimental. Doravante, passaremos a direcionar o texto para especular acerca do CorPo em suas ações na existência: o que este, e como este, produz, o que e como pensa.
Seguimos a exploração acerca desta fantasia, e nisso implicamos a Educação: está suposto a relação dos corpos no espaço de uma aula, bem como do corpo que se flexiona sobre a escrita da pesquisa. Na realidade, este texto ficciona tal corpo, como a criação de um personagem: pesquisador, docente, escritor. Na ficção, este corpo realiza tal texto, produzindo realidades. Logo, consideramos que nada descobrimos, mas inventamos, conforme a sentença de Wittgenstein retomada por Flusser (1966, 1), que afirma:
Uma profunda modificação do nosso conceito de realidade e ficção, da descoberta e invenção, do dado e do posto. Com efeito, desvenda a perda de uma fé em realidade dada e descobrível. E mostra a nossa situação como ficção inventada e posta por nós.
Neste contexto, o pensamento é condição para projetar-nos, via uma exploração sobre a ideia de um CorPo, no seguinte sentido:
O pensamento (a frase) não é simplesmente um entre os projetos pelos quais nos projetamos contra o nosso estarmos jogados para cá; o pensamento é, com efeito, o nosso projeto-mestre, o padrão de acordo com o qual todos os demais projetos secundários se realizam (Flusser, 2011, 55).
1.2 Notas sobre corpos potenciais do/no pensamento
É preciso ressalvar: potencial não é compreendido como sinônimo de potência, mas enquanto próprio da potência, como condição para ela; a potência emerge na força das composições, portanto, nas relações, compreendidas como potência dos/nos encontros. Um corpo precisa ser potencial enquanto condições próprias para se potencializar. Sendo assim, a potência não estaria nem no ser, nem no ente (embora ambos possuam suas forças para que possam se compor), mas no “entre”, enquanto possibilidades dos encontros. Não se trata de um corpo potente, forte, como rigidez, pois o CorPo precisa de leveza para empreender velocidades, e os potenciais se manifestam de variados modos; corpo que necessita ser flexível para cambiar as rotas, para compor e decompor sempre que necessário; precisa deixar-se, esquecer-se ativamente, para se refazer: corpo que é, sobretudo, processo, a ele nunca se chega, mas sempre se está nele enquanto deslocamentos possíveis; corpo como espaço permanente de passagens, como lugar de autoexperimentação.
Então, trata-se do CorPo como possibilidades de composição do corpo -ou de corpos-, de um certo estado de presença, de uma postura (ou impostura) via jogos compreendidos como exercícios: é um modo de pensar, de estar, de agir, de se modular. Um corpo que nota, que anota, que se compõe na relação com o meio, e que está a derivar. Ressalta-se, com Simondon (2020, 16), a relação indivíduo-meio:
Assim, o indivíduo seria apreendido como uma realidade relativa, uma certa fase do ser que supõe, antes dela, uma realidade pré-individual, e que não existe completamente só, mesmo depois da individuação, pois a individuação não esgota de uma única vez os potenciais da realidade pré-individual e, além disso, o que ela faz aparecer é não só o indivíduo, mas o par indivíduo-meio. Dessa maneira, o indivíduo é relativo em dois sentidos: porque ele não é todo o ser e porque resulta de um estado do ser no qual ele não existia nem como indivíduo, nem como princípio de individuação.
Um CorPo cria as condições de possibilidade para que a criação se dê, entendendo essa criação como composição. Esse criar condições apresenta-se sobre a imagem do jogo, da criação que emerge entre os desvios impostos nas restrições do jogar; isto é, desde uma autoimposição ao desequilíbrio, em uma autoexperimentação que se expressa como autoficção. Um CorPo, então, é esse que é capaz de se agenciar com forças diversas, e nisso afirmar sua diferença; de se pôr em jogo no jogo, mas entendendo- se em jogo com o acaso - que é soberano. Busca compreender suas dinâmicas (de si e das matérias em jogo nos espaços que ocupa), pois não quer ser mera peça neste jogo (nestes jogos). Todavia, entende que alheio a seu esforço, é sempre matéria em jogo, corpo entre tantos corpos, coisas numa dança cósmica; e precisa ser, precisa esquecer-se de si, precisa de imprecisão, de perder o controle para ganhar vitalidade. Trata-se, por isso, de uma atenção dispersa, já que o esforço controlado consome energia e restringe os encontros na rigidez da forma.
O CorPo só é capaz disso porque tem em vista as matérias em movimento, energias, e nisso suas possibilidades vitais se ampliam: e ele só percebe na medida em que aguça sua sensibilidade. Logo, passa a compor em um acordo discordante entre sensibilidade (compreendida via Vontade de Potência) e razão. Todavia, não se opõe aos estratos, ao sujeito, à linguagem, às instituições, experimentando com prudência para que as linhas de fuga não se transformem em linha de morte: é como uma ideia- movimento, um intercessor, um modo, ou mesmo, se se quiser, um estilo. É um CorPo no corpo, é o si que põe o eu a dançar; é pensamento e ação física, um jogador que produz fissuras via desequilíbrios da forma, da rota: via arte, via humor, via morte (em pequenas e prudentes doses). Tomamos a assertiva de Nietzsche em Ecce Homo (2016, 57): “o fato de tornar-se aquilo que se é admite que não se tenha a mais longínqua ideia daquilo que se é. Sob esse ponto de vista também os erros da vida têm o seu significado e o seu valor, bem como as estradas mais longas e os círculos viciosos” (grifos no original).
Dado as pressuposições apresentadas até aqui, uma problemática nos confronta: como desviar da representação (Deleuze, 1988), ou, noutros termos, das condutas restauradas (Carlson, 2010), para que o corpo venha sempre a diferir de si mesmo, derivando, via improvisações, tornando-se o que se é em acessos intermitentes de individuação (Simondon, 2020)? A partir desta inflexão, onde se toma a autoficção deste corpo, enquanto autor, como uma performance nos espaços que ocupa, com ênfase à aula e à pesquisa-texto, adentramos na segunda parte deste ensaio. Entretanto, importa compreender que, anterior ao sujeito que escreve, bem como daquele que ensina, há um corpo presente, habitando espaços ocupados por forças excêntricas que todavia lhe afetam. Corpo que foi jogado neste mundo ao nascer, e que, no decurso de sua existência, se projeta como sujeito. É este corpo, pois, que perspectivaremos no que segue. Significa afirmar, portanto, que ante o autor-pesquisador-escritor-professor que se constitui, há um indivíduo produzido por miríades textuais, compondo-se sobre e com o arquivo da pesquisa e da docência, modulando textos e aulas, e assim transcrevendo e traduzindo-se. É deste indivíduo que suporta o sujeito, deste corpo prévio e, todavia, constante, sempre ali, que trataremos. Corpo, é preciso registrar, do qual não sabemos efetivamente o que pode, do que é capaz; e justamente por isso experimentamos e ficcionamos. Consequentemente, pela multiplicidade do que este é e pode ser, o leitor poderá imprimir sobre a emergência da palavra corpo, doravante expressa no texto, a imagem de um escritor/a, pesquisador/a ou docente, ambos operando com matérias das quais é feito os estudos nos quais se implicam; imaginação que vem a calhar com o contexto da nossa proposta.
Assim posto, passamos a desdobrar o texto em onze pontos, numa escrita fragmentária que intenta melhor esboçar a imagem deste CorPo, mas, sobretudo, um modo de este mover-se, de se compor nos encontros nos quais se dispõe. Pontos estes que expõe, tanto quanto for possível, problematizações, proposições e paradoxos. Há, portanto, uma relação entre texto e real, como entre ficção e realidade, dimensionado como performatividade, conforme a assertiva de Klinger (2006, 58):
O texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem [...]. Quer dizer, trata-se de considerar a auto-ficção como uma forma de performance.
2. Primeiro problema: liberar a ação, um corpo em estado de prontidão
Naquela época, minha vida e meu estilo de trabalho estavam sobre forte influência da filosofia taoísta. Buscava intensificar minha percepção intuitiva e reconhecer ‘os padrões do taoísmo’; praticava a arte do wu wei, o não agir que vai ‘contra o feitio das coisas’, esperando pelo momento certo sem forçar nada. A metáfora de Castañeda, do centímetro cúbico de chance que desponta de tempos em tempos e é apanhado pelo ‘guerreiro’ que leva uma vida disciplinada e que aguçou sua intuição, estava sempre presente em minha mente (Capra, 2009, 75).
Há uma ambiguidade na nossa busca, pois nossa e ao mesmo tempo impessoal; não objetivar, mesmo assim definir, provisoriamente; liberar-se da ação pelo movimento: o guerreiro que se confunde com a ação, o gesto que parte do exterior. Nos mantemos à espreita de algo, pela digressão expressa em texto, pois, a linguagem “é apenas rumor informe e jorro, sua força está na dissimulação: porque ela faz apenas uma única e mesma coisa com a erosão do tempo: ela é esquecimento sem profundidade e vazio transparente da espera” (Foucault, 2001, 241). Uma operação sobre o provisório; operação conceitual, definição de pontos sobre uma linha sempre porvir; intensidade do tempo presente como um passado- futuro, onde se vive na intensidade do aqui-agora, de um Erewhon:
O empirismo é o misticismo do conceito e seu matematismo. Ele trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora, ou melhor, como um Erewhon, de onde saem inesgotáveis os ‘aqui’ e os ‘agora’ sempre novos, diversamente distribuídos. Só o empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as coisas em estado livre e selvagem, para além dos ‘predicados antropológicos’. Eu faço, refaço e desfaço meus conceitos a partir de um horizonte móvel, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e diferencia (Deleuze, 1988, 17).
2.1 Proposição primeira: o CorPo é um corpo em estado de improviso
Improviso e improvisação têm aqui sentidos diferentes, tal qual potencial e potência. Por improviso entendemos uma condição de espírito, o corpo em estado de espera, sobre o qual opera o esquecimento como condição para acontecimentos possíveis (Foucault, 2001). Já a improvisação seria um estado de devir, uma ação, efetuação: estado de improviso ativo, ao mover-se entre e com os corpos; há uma remissão, portanto, para a noção de individuação, conforme proposta por Simondon (2020), na medida em que a improvisação defasa o ser, que não pode ter pleno controle do que se tornará em nova fase individualizada.
Sendo assim, o potencial é um estado corporal: uma capacidade de se manter ativo, disposto; um corpo que se encontra em prontidão, como equilíbrio instável: estado de espera para se pôr em movimento, a partir das afecções alegres (do que lhe afeta nos espaços cotidianos) e do pré-individual (intensidade latente da natureza presente nos corpos, força de mutação); e assim, em improvisação e composição de si, efetuada junto aos corpos, aumentar sua potência de existir. Trata-se de uma imobilidade sempre prestes a ser quebrada, de um corpo pronto a se precipitar em prol de encontros alegres; ou, justamente, a partir deles: metaestabilidade ativada no jogo das relações, permutação indivíduo-meio. Com efeito, o estado de improviso significa se colocar no limite da estabilidade, descentrado, para, por essa via, produzir o devir, entendido com acesso de individuação e nova composição dos/nos corpos.
2.2 Proposição segunda: manter-se inteiro
Quando o ser se coloca a serviço de algo externo a si, se fragmenta. O bem é assim entendido como o bem do outro, de uma causa, qualquer que seja: é o mal então o que mantém nossa integridade, enquanto disposto aos possíveis, ao porvir (Bataille, 2017).
Há, portanto, crueldade neste corpo, que precisa negar a ação sobre o tempo, enquanto gesto definido por uma causa, em proveito da possibilidade de agir a qualquer tempo, em qualquer instante: corpo que precisa negar o “bem maior”, o “bem dos outros”, e afirmar o trágico da existência, do que não possui sentido dado, mas criado pela ação de um corpo potencial.
3. Segundo problema: o que move esse corpo? A ausência de sentido no compor, o grau de potência e a chance do jogador
O importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e aceleração de partículas. Uma composição de velocidades e de lentidões num plano de imanência [...]. É pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos (Deleuze, 2002, 128).
É preciso distinguir de que corpo se trata, e de como ele se relaciona com os outros corpos; na perspectiva aqui adotada, portanto, de como funciona, de que modo se coloca em jogo e neste jogar se compõe; isto é, o que o leva, enquanto jogador (e ao mesmo tempo matéria do/no jogar), a determinados encontros e não outros; e como se dá essa composição.
3.1 Proposição terceira: um corpo que quer perseverar e nisso se compõe
Todo ser, segundo Espinosa, quer perseverar em si (Deleuze, 2002). Trata-se de pensar num corpo entendido como bom, projetando-o como este que faz de si boas composições. Um corpo que produz condições para bons encontros, que está à espreita do que lhe afeta, de afecções alegres. Cabe ponderar que, apesar da ênfase dada neste texto, por vezes, ao corpo humano, considera-se toda a extensão de corpos humanos e não humanos, e que o jogo se dá nesta tensão dos (des)encontros e (de)composições entre corpos diversos.
3.2 Proposição quarta: disposição aos encontros
Considera-se o espaço (qualquer que seja) ocupado por forças ativas e reativas, que agem sobre os corpos e que, de todo modo, o compõe (enquanto o corpo também é espaço). Sobre essas forças, Deleuze afirma (1976, 22):
Sem dúvida é mais difícil caracterizar essas forças ativas. Por natureza elas escapam a consciência: ‘a grande atividade principal é inconsciente’. A consciência exprime apenas a relação de certas forças reativas com as forças ativas que as dominam. A consciência é essencialmente reativa; por isso não sabemos o que um corpo pode, de que atividade é capaz. E o que dizemos da consciência devemos dizê-lo também da memória e do hábito. Mais ainda: devemos dizê-lo ainda da nutrição, da reprodução, da conservação, da adaptação [...].
Apropriar-se, apoderar-se, subjugar, dominar são os caracteres da força ativa. Apropriar-se quer dizer impor formas, criar formas explorando circunstâncias.
O CorPo afirma sua diferença no jogo com essas forças, busca coadunar-se com as forças ativas, aumentar seu grau de potência de agir (seu potencial). Corpo que se põe em jogo, cria procedimentos, se exercita numa autoexperimentação, tal qual propôs Nietzsche (Safranski, 1998).
3.3 Proposição quinta: desviar em direção aos possíveis pela via do improvável
Como modo de não se inserir no tempo enquanto corpo-função, gesto efetivado em um fim (não direcionado à uma causa, um fim externo a si), é preciso desviar da recognição, do retorno ao Mesmo (Deleuze, 1988). Estamos sob o céu do acaso, onde impera o jogo, onde a chance se apresenta como o sempre possível, improvável, inocente, não buscado, ainda assim, expectado: um outro intensivo e provisório a nos esperar. A via para essa individuação, como um devir-outro, é a disposição ao acaso, e de afirmá-lo através do jogo, em sua dimensão trágica (Nietzsche, 2005). Novamente, com Deleuze (1976, 19):
Outra maneira de colocar a grande equação: querer=criar. [...] Trágica é a afirmação, porque afirma o acaso e a necessidade do acaso; porque afirma o devir e o ser do devir, porque afirma o múltiplo e o um do múltiplo. Trágico é o lance de dados.
3.4 Proposição sexta: entre os estratos e o devir, afirmar o jogo entre Apolo e Dionísio
Estamos então entre “dois corpos” no corpo: o corpo estratificado do sujeito e o corpo intensivo, fluxos do Corpo sem Órgãos-CsO (Deleuze & Guattari, 1996). Para esta relação associamos, ao segundo, o devir trágico dionisíaco, como forças que atravessam e compõe o CsO; e ao primeiro, as aparências que se manifestam, que se constituem para amparar a vida: imagens apolínias, como estratos que nos possibilitam partilhar uma vida em sociedade, e não nos precipitar ao abismo. Como afirmam Deleuze e Guattari (1996, 19):
Nós não paramos de ser estratificados. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos do que o organismo pertence a um estrato e dele depende? Respondemos agora: é o CsO, é ele a realidade glacial sobre o qual vão se formar estes aluviões, sedimentações, coagulação, dobramentos e assentamentos que compõem um organismo - e uma significação e um sujeito.
A estas imagens ainda associamos a relação entre instintos e instituições, sendo que as instituições possibilitam um modo de condução das energias que pulsam nos corpos, fluxos e contenções nos estratos que formam as instituições e nisso sujeitos: paixões dos corpos que passam a ser conduzidas pelas práticas instituídas (Deleuze, 2006).
Sobre a imagem de Apolo, conforme nos apresenta Nietzsche (2005), representamos os estratos, a linguagem, o sujeito, o gesto calcado no tempo, a ação objetivada, a imagem sempre a ser formada como representação do ideal, do belo. E ainda que Dionísio nos reapresente essa força sempre pulsando ante o subsolo sobre o qual se representam as aparências apolíneas, uma vez que não se trata de oposição, mas de complementariedade Apolo-Dionísio, a força trágica tende a ser demasiadamente contida pelos estratos; ou seja, as instituições a todo tempo reafirmam o sujeito, buscando interpretações, identificações, significações e condução das operações dos/nos corpos. É nesse sentido que é convocada por este CorPo a potência da dimensão trágica da existência:
Apolo é o deus da forma, da claridade, do contorno nítido, do sonho iluminado e, sobretudo, da individualidade e da razão. [...] Dioniso, por sua vez, é o selvagem deus da embriaguez, do sentimento, do desmedido e da vertigem coletiva. Todavia, ambos aspectos -o dionisíaco e o apolíneo- constituem respostas frente as potências elementares da vida. [...] Dioniso e Apolo significam a oposição entre sentimento e razão, vontade e representação, coletividade e individualidade (Safranski, 1998, 94; tradução nossa).
O CorPo, então, dispõe-se em um entre, reafirma as tensões, experimenta-se com prudência para que o corpo não se restrinja aos estratos, não se defina por identidades fixas, e não sesse assim seus fluxos; e, por outro lado, não seja demasiado vertiginoso na produção de linhas de fuga, não produza linhas suicidas (Deleuze & Guattari, 1996). O CorPo é experimentador: coloca-se em movimento através do jogo; repetimos: é ao mesmo tempo jogador e, paradoxalmente, espaço de jogo e matéria em movimento; é um corpo cujo as performances se propõem a desviar das condutas que lhe diminuem a alegria de viver.
4. Primeiro paradoxo: o ser inteiro e o que é possível fazer hoje?
Se é verdade que, no sentido em que se costuma entendê-lo, o homem de ação não pode ser um homem inteiro, o homem inteiro guarda uma possibilidade de agir [...]. É preciso distinguir de um lado o mundo dos motivos, onde cada coisa é sensata (racional), e o mundo do não-sentido (livre de todo sentido). Cada um de nós pertence em parte a um, em parte a outro” (Bataille, 2017, 33).
Entendemos que manter-se inteiro, como nos apresenta Bataille (2017), seria impossível, ou só poderia ser alcançado por breves instantes de tempo, que o autor afirma como o ápice, seguido do declínio inevitável. Ademais, se o ser fosse inteiro, não haveria sentido no que propomos enquanto um compor- se. É só por estarmos variando nossa constituição a todo o momento que o jogo passa a ter motivo e sentidos. De todo modo, a imagem do “homem íntegro” detém força enquanto liberdade daquele que não se fragmenta ao se identificar com uma causa de antemão e, sobretudo, indefinidamente, numa marcha eterna ao horizonte inalcançável. Nossa integridade se afirma pela liberdade compreendida nas possibilidades de escolher nossas relações, como seres sociais; em processos, por essa via, educacionais: de afirmar o que é possível fazer hoje, em quais agenciamentos posso me inserir, por quais causas quero combater, e ao lado de quem. Como nos propõe Guattari (2012, 55): “os indivíduos devem se tornar ao mesmo tempo solidários e cada vez mais diferentes”.
Trata-se de almejar a integridade enquanto inteireza de quem se move como um nômade (Deleuze & Guattari, 1997), para o qual os pontos não subjugam as linhas: de um agenciamento a outro se ressignificar, recompondo-se ao travar contato com forças diversas, ao ativar-se nos processos vitais aos quais decide não ficar alheio (há nisso uma escolha ética); mas, de todo modo, nos quais não se reduz como uma função.
5. Segundo paradoxo: desviar da razão pela razão (e retornar a ela)
Do jogo humano ao jogo ideal. Há um primeiro jogo possível, o humano, que divide o acaso, que busca uma meta; jogo de probabilidades, que identifica os meios e resultados, opera pela recognição.
Há, também, outro jogo, o ideal, que reafirma o acaso (Deleuze, 2007). Estamos numa variação entre esses jogos, ao produzir, então, um desviar pela razão (em certa medida calculado), para pôr-se em jogo, via descentramento e consequente desequilíbrio.
Nossa hipótese é a de que o jogo autoimposto numa autoexperimentação (como numa escrita da pesquisa, ou compartilhado, como parte de uma aula) é um modo de produzir fissuras no solo dos estratos. Que é a razão que cria o jogo, mas ela cede espaço para a intuição, para a sensação, para uma composição que só pode resultar num devir-outro ao operar via esquecimento ativo, ao pôr-se em improvisação. Um jogo que se projeta no pensamento como não-sentido e paradoxo, e no corpo como sensação e intuição; um jogar-se, lançar-se, projetar-se; movimentos e possibilidades: como uma chance que sempre retorna, no porvir que, paradoxalmente, se torna.
Aqui nos apropriamos da ideia de Vontade de Potência (Nietzsche, 2019), embora o desvio que Bataille (2017) propõe para Vontade de Chance nos pareça apropriado, por apresentar um corpo que não busca a potência, no seu sentido de aquisição e detenção de um poder, mas a chance, enquanto possibilidade de um potencializar-se, enquanto movimento e não-permanência. De todo modo, nos interessa a ideia do acordo discordante de Deleuze, para o qual o conceito de Vontade de Potência tem importância; vejamos, com Machado (2009, 102):
Os conceitos nietzschianos de vontade de potência e eterno retorno são, em última análise, os principais nomes, entre os vários utilizados por Deleuze, para os conceitos de diferença e repetição. Efetivamente, quando analisamos sua ‘doutrina das faculdades’, veremos que, para ele, o eterno retorno é o pensamento, o pensamento mais elevado, a forma extrema, enquanto a vontade de potência é a sensibilidade, a sensibilidade das forças, a sensibilidade diferencial. Expondo a tese central da filosofia deleuziana de um acordo discordante entre sensibilidade e pensamento a partir dos conceitos de vontade de potência e eterno retorno.
6. Conclusão (tentativa de síntese): tornar-se o que se é como autoficção e performance, um acordo discordante
O corpo, portanto, é compreendido como meio de individuação, que se torna potencial enquanto um meio hábil (potência do pré-individual) para individuar-se, dobrando-se com seu entorno, constituindo o par indivíduo-meio (e por isso importa os espaços que ocupa, nos quais se insere, pois com e neles se constitui). Para tanto cria-se jogos ideais, com regras imprevistas, aberto ao acaso em espaços-mundo. CorPo que opera escolhas nos encontros e agenciamentos aos quais passa a se compor, que ganham força a partir de uma (in)determinada força de atração; percebida primeiramente, e de modo incerto, pela sensibilidade, como uma paixão do Fora (Blanchot apud Deleuze, 2006).
Trata-se de uma apropriação da sensível, que é posteriormente compreendida pela razão, num acordo discordante. Tal compreensão se dá num ponto vital, de difícil precisão: no instante em que, tomado por essas forças que o modulam, torna-se indivíduo em nova fase, assim que findado o processo de individuação, e antes do novo acesso ao devir. O mesmo ocorre acerca da nossa percepção: é como considerar que um pensamento só pode ser pensado, enquanto ideia, quando passa a, de certa forma, individuar-se num pensamento-corpo (sempre composto de diversas partes). O mesmo ocorre com os objetos, com as imagens, com qualquer coisa que precisa tomar forma como individuo para ser assim percebido. Operações que dizem respeito à estabilidade e desestabilização. Ambos os processos, um sensível (sensação e intuição) -movimentos excêntricos, de envolvimento-, e outro racional -movimentos concêntricos, definições-, são imbricados e se dão numa apropriação poética do e no real, onde as faculdades entram em ação. Logo, a intuição que se insinua no corpo coloca-o a pensar, e é então inicia a performance inventiva, autoficção, sobre a intervenção do intelecto.
Considera-se que o corpo, como espaço e meio de individuação, não pode ter domínio pleno sobre o processo, porquanto é apanhado pelas forças do Fora, e do próprio fora que habita o dentro: ou seja, o ser é tomado como espaço de jogo-composição-desdobramento-de-si com forças internas-externas. É um duplo jogo, como no paralelismo espinosista entre matéria e pensamento. Somos matéria num complexo jogo existencial (energético, bioquímico, espiritual) e, sem embargo, somos pensamento que se pensa enquanto as coisas se processam em si. CorPo que tenta, assim, captar o que lhe passa, notando e anotando, desde a percepção das forças que o atravessam, nos encontros em que pode ancorar-se para aumentar sua vitalidade, seu potencial. Apropriar-se significa, ao mesmo tempo reinventar-se como existência poética e autoficção. Para isso, é preciso compreender-se no limite do controle, em seu permanente descentramento; deixar que as coisas cheguem de improviso; o improviso das coisas, ser-se uma coisa:
Trata-se de, com cuidado e operações especiais, colocar-se a disposição das emissões daquilo que se estuda; é preciso lavrar contatos numa ambiência de reciprocidades de aberturas forçadas, tendo-se em vista que estas são violenta ou suavemente impostas pelas ações dos díspares (Orlandi, 2003, 93).
Para concluir, propomos, em síntese, o entendimento de si como um espaço de estudo em experimentação; por isso, de autoexperimentações. Destituir, para isso, a compreensão do ser como interioridade e centramento pela coexistência dentro-fora (sempre em tensão e em jogo). A autoficção emana deste acordo discordante, neste equilíbrio instável: vem de fora, joga-se com as forças de si, e se compõe nesta improvisação. Ou seja, que neste estudo (do jogo em improvisação, ou da improvisação em jogo) o CorPo possa perceber-se no que passa e nisto afirmar sua existência como uma composição. Com efeito, é pela exterioridade, é entendendo-se como parte do Fora, para neste espaço fazer de si pequenas porções de território onde se possa habitar; espaço que, todavia, não possui raízes num subsolo precursor: o subsolo é movimento, energia, é caos. Em síntese, seguir projetando-se, testemunhando uma existência que se sabe ficcional, todavia real, pois em jogo com a imprevisibilidade da vida na qual performa, na qual se escreve.