1. INTRODUÇÃO
No panorama das “humanidades”, entende-se, desde sua constituição, uma espécie de transversalidade ideal inerente às chamadas “Ciências Humanas” (Foucault, 2007). Hoje, frontalmente ameaçado, e, em alguns casos, em vias de extinção, o campo das “humanidades” distingue disciplinas e se constitui em chaves distintas das Letras, Linguística e Artes. A contingência deste tipo de separação não pode prescindir de uma compreensão inicial sobre o problema da linguagem e, mais especificamente, sobre a tensão dos expedientes representativos evidenciada pelos limiares ontológicos, epistemológicos e metodológicos entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo (St. Pierre, 2018).
A transição entre as tendências paradigmáticas do estruturalismo e do pós-estruturalismo pode ser vista em Lógica do sentido, entre outras obras de Gilles Deleuze, aqui tomadas como material para se pensar o problema da linguagem. A problematização de tais tendências se evidencia no esgotamento contemporâneo do repertório analítico e formal de disciplinas isoladas e sinaliza para um exercício de teorização voltado para práticas transdisciplinares. Explorando as intersecções entre a textualidade e a semiologia de Roland Barthes (2013) e a concepção deleuziana do sentido como um quase-corpo (Deleuze, 2015), apresenta-se, em tese (Torelly, 2019), um conjunto de variações numa zona de indiscernibilidade transdisciplinar, que se apresenta como matéria própria para o traçado de uma linha transversal cujo contorno esboça um “tema-objeto” que já não pertence a nenhum domínio. Postula-se uma zona de sentido que não computa débitos particulares com seus referentes disciplinares primeiros, mas afirma a bifurcação de limiares indiscerníveis entre o inominável (impensado) e atos de criação. Ao traçar um plano de pensamento entre três linhas a-paralelas (Godinho, 2016), com a filosofia, a literatura e a arte, procura-se circunscrever, por diferentes vias, tensores e deslizamentos conceituais, presilhas e gatilhos epistemológicos, os quais atravessam debates teóricos que dão a ver a emergência potencial de novos meios expressivos no campo das chamadas “humanidades”. Ao invés da condensação do sentido em zonas de fixação transcendental, trata-se, antes, de acompanhar o desenho de uma ambiência intelectual de rarefação dos significados, materialização da linguagem, multiplicação/ampliação/dispersão do elemento do sentido em n arranjos e configurações.
2. O contrato significante e o diferencial contínuo
Em entrevista à Didier Eribon, Lévi-Strauss menciona o Cours de linguistique générale, de Ferdinand de Saussure, compilado em notas por alguns de seus alunos e publicado em 1916, e o prefácio de Franz Boas ao Handbook of American Indian Languages, escrito em 1911, como dois marcos axiais para o paradigma linguístico/estruturalista: “as leis da linguagem funcionam no nível do inconsciente, fora do controle dos sujeitos que falam, o que permite estudá-las como fenômenos objetivos, representativos, como tal, de outros fatos sociais” (2005, 63). Aponta-se, assim, para um inconsciente/linguagem regido por leis, cognoscível, estruturado e capaz de abarcar outras esferas de conhecimento. A presunção axial permite esboçar eixos pelos quais se lamina e propaga uma certa cientificidade, representada especialmente pelas sistematizações da linguística moderna, a etnologia, a psicanálise e a epistemologia. É a partir deste pressuposto que se produz, em meados do século XX, a emergência do estruturalismo como um fenômeno de mais largo alcance na paisagem intelectual da cultura ocidental: uma espécie de “espírito do tempo”, operando como um grande feixe analógico para onde convergem métodos, problemas e soluções de variadas disciplinas, que passam a buscar, aquém e além da poeira dos fatos, “um domínio mais profundo como objeto de ciência e de filosofia” (Deleuze, 2006, 221-223). Nesse escopo, o problema da inscrição do sentido se desprende das designações externas e das significações internas, passando a fundar o “puro spatium” de uma “topologia transcendental” (Deleuze, 2006, 225-226).
Em Elementos de semiologia, publicado em 1964, Roland Barthes definia o programa de uma ciência geral dos signos, cuja aposta consistia em expandir o potencial de cientificidade do signo linguístico para o estudo de outros domínios (Barthes, 2007). A linguagem deixava de se confundir com os atos de consciência e de assumir o papel de mera referencialidade instrumental para abrir-se ao problema dos atos de fala e dos processos de significação. Retomando a linha de Saussure, Barthes apresenta o signo como uma entidade bifacial articulada pelo sentido e a semiologia como um compromisso de sistematização que “não pode admitir um diferencial contínuo” (Barthes, 2007, 49). O compromisso sistemático e o valor sígnico são garantidos pelo caráter socialmente motivado de um “contrato significante”, responsável, ademais, pela fixação do sentido na linguagem. Cinco anos mais tarde, já em 1969, Gilles Deleuze escrevia Lógica do sentido, propondo uma nova forma de apresentar as “núpcias entre a linguagem e o inconsciente” (Deleuze, 2015, 7). Ali, em vez de articular a motivação do contrato significante (o que criava simultaneamente um efeito de cientificidade e um bloqueio epistemológico ao diferencial contínuo), o sentido é apresentado como uma entidade não existente, paradoxal, cujo paradoxo repercute a coexistência entre o limite e o ilimitado como duas dimensões interiores à própria linguagem. “Mas é próprio da linguagem, simultaneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites estabelecidos: por isso compreende termos que não param de deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da ligação em uma série considerada” (Deleuze, 2015, 18).
A tensão entre o “contrato significante” e o “diferencial contínuo” marca os termos e a história de uma “aventura intelectual” (Dosse, 2021), cujos pendores recaem ora para o lado do elemento contratual, ora para o diferencial. Com a emergência das teorias da textualidade e dos novos modelos do inconsciente postulados em livros caleidoscópicos como O prazer do texto, lançado por Roland Barthes em 1973, e O anti-Édipo, publicado por Deleuze e Guattari entre os anos de 1972 e 1973, a crença na cientificidade da semiologia se desloca. O resultado é que a matéria observada não mais se subordina às reduções estruturais, uma vez que do interior dos perceptos visíveis destacam-se vetores de singularidades, moleculares. Na definição de Deleuze em artigo sobre o estruturalismo já se percebem as oscilações potenciais que transversalizam o modelo proposto: “Toda estrutura é uma multiplicidade de coexistência virtual” (Deleuze, 2006, 231). Interessa-nos argumentar que o movimento pendular entre o contrato significante e o diferencial contínuo não apresenta os termos de uma escolha cominatória, mas a coexistência problemática entre duas diferentes métricas lançadas sobre o real.
3. Crítica da crítica da razão pura (do kantismo ao bergsonismo)
A complexidade das questões envolvendo o problema da linguagem sintetiza-se em duas diferentes etapas: a dual e a vital. A primeira é marcada pela “descoberta” da dualidade do sistema língua-fala e do postulado sobre a arbitrariedade do signo linguístico. De um lado, atribuía-se à língua um papel de invariante, criando condições para que dela se destacasse uma espécie de codificação fundamental; de outro, a fala era caracterizada como o meio contingencial ou lugar superficial onde ocorreriam as variações individuais. “Saussure teria seguido de perto o debate entre Durkheim e Tarde; a sua concepção de Língua viria de Durkheim e a sua concepção de Fala seria uma forma de concessão às ideias de Tarde sobre o individual” (Barthes, 2007, 21). Em relação a essa concepção, Deleuze, já deslocado pela parceria com Félix Guattari, observa que “Durkheim encontrava um objeto privilegiado nas grandes representações coletivas, geralmente binárias, ressoantes, sobrecodificadas... Tarde objecta que as representações coletivas supõem aquilo que é preciso explicar” (Deleuze & Guattari, 2012, 107).
Não cabe analisar aqui a minúcia da “descoberta” saussuriana, nem o debate que ela subsumiu, mas sublinhar que as coordenadas desse esquema língua-fala (código-variação) serão replicadas posteriormente em cada nível diferente da problemática da linguagem, numa espécie de laminação essencial a funcionar como uma forma modelar reproduzida em outras instâncias (Deleuze & Guattari, 2011, 36-39). Se a dualidade língua-fala criava já um primeiro eixo de hierarquização, a arbitrariedade do signo é o outro ponto destacado. A arbitrariedade do signo linguístico é o que certifica o seu potencial científico de direito, pois é somente pelo isolamento do signo em relação a qualquer forma de referente externo que se postula a existência de um sistema homogêneo ancorado em elementos invariantes (Deleuze & Guattari, 2011, 37-38). Em suma, é preciso isolar o signo de qualquer referente e, ao mesmo tempo, protegê-lo do pragmatismo das variáveis, para que ele possa tornar-se o objeto de uma ciência. Há, aqui, percutindo no fundo do que se entende por científico, sistemático, homogêneo, uma batalha que opõe o direito das variáveis ao império das constantes, a multiplicidade heteróclita dos fatos à homogeneidade dos sistemas. No interior desse debate epistemológico, há uma verdadeira política dos acoplamentos. Desenha-se um importante conflito entre o fato e o direito, cujas repercussões impregnam a própria noção de método científico.
De tais discussões, depreende-se que os direitos atribuídos ao pensamento sistemático dependem de um conjunto de pressupostos, que fazem, conscientemente ou não, da multiplicidade fática, o emblema negativo de uma coisa inacessível, ou somente acessível pela via de uma relação de homogênese. “O limite da linguagem é a Coisa em sua mudez - a visão. A coisa é o limite da linguagem, como o signo é a língua da coisa” (Deleuze, 2011, 128). Perturbadas pela inacessibilidade da coisa, as faculdades intelectuais hesitam, e, diante da hesitação, formula-se a “forma da possibilidade lógica pela relação dos termos da proposição com os ´lugares` que concernem ao acidente, o próprio, o gênero ou a definição” (Deleuze, 2015, 29-30); ou o limite de um imperativo ontológico, categórico-moral, uma espécie de ponto de apoio, funcional aos esforços de uma humanidade reflexiva que “procura o apodíctico a partir do hipotético” (Gil, 2008, 52) - estranho empreendimento “que consiste em nos elevarmos do condicionado à condição para conceber a condição como simples possibilidade do condicionado” (Deleuze, 2015, 30).
Sendo a “coisa” inacessível, todo esforço analítico razoável teria como ponto de partida lógico, transcendental ou moral essa impossibilidade. Perante o impossível, a inteligência humana se consola com seu próprio reflexo nas formas de possibilidade da lógica proposicional e do juízo sintético. Em Kant, “só podem legitimamente pretender a objetividade os juízos sintéticos a priori” (Lapoujade, 2015, 53). Definindo as condições de toda experiência possível, o transcendental kantiano realiza um “decalque das propriedades do empírico”, esboçando a universalidade de um princípio à imagem e semelhança do dado (Gil, 2008, 116-117). Lévi-Strauss, por exemplo, resumia seu kantismo da seguinte maneira: “que o espírito tem suas limitações, que as impõe a um real para sempre impenetrável, e que só o compreende através delas” (2005, 155). Em linha de continuidade com a abordagem kantiana, Umberto Eco, ao defender sua teoria sobre os limites da interpretação, apresenta as “linhas de resistência” do real como um “já-dado”, um limite que o mundo opõe aos puros efeitos de linguagem, consubstanciado na “ideia de um Deus que diz não” (Eco, 2013, 564-565). O componente metafísico que acompanha a constituição do cientificismo moderno repercute, de certo modo, essa mesma operação intelectual: um ponto de vista sobre as limitações do espírito e a impenetrabilidade do real constitui o ponto de partida ou o denominador comum de uma matéria pensável, pois “o espírito, em seu caminhar comedido e metódico, não poderia enfrentar a intrusão imediata da totalidade do real” (Blanchot, 2010, 37).
Com Deleuze e Guattari, esse duplo postulado (da limitação do espírito e do real impenetrável) não se apresenta como fundamento para o exercício de uma razão universal, mas somente como modo de funcionamento de uma semiótica particular - a semiótica significante (Deleuze & Guattari, 2011). Além dos seus limites predicativos, não haveria o absurdo impossível que afundaria uma inteligência hesitante, mas a singularidade das operações de outros “regimes de signos” (Deleuze & Guattari, 2011), ou, ainda, a particularidade elementar da própria matéria, entendida como a “camada ideal” que caracteriza o sentido como “alguma coisa incondicional” (Deleuze, 2015, 30). O kantismo e suas variantes contemporâneas, com a assunção da impenetrabilidade do real e das limitações do espírito, fundariam antes as variáveis de uma linguagem particular, tornada despótica em seu movimento de tentar abarcar a totalidade, mas orbitada concretamente por uma pluralidade de pontos de vista não significativos, uma pluralidade de vozes paradoxalmente irredutíveis às reduções do espírito. Contra o exercício regrado das faculdades hesitantes, Deleuze estabelece um inventário dos “movimentos aberrantes” (Lapoujade, 2015), demonstrando que o juízo sintético não é capaz de dar conta dos sintetizadores eventuais por meio dos quais as faculdades não param de ultrapassar os seus próprios limites (Deleuze, 2009). “Deleuze mostra que o ´não`, na expressão ´não-ser`, exprime outra coisa que o negativo. Essa outra coisa é a Diferença ontológica” (Gil, 2008, 49), algo que resiste e não se subsome a uma relação entre Ser e diferença relativa.
Fora do kantismo e das suas traduções estruturais, o bergsonismo de Deleuze suscita uma outra relação com o real (Deleuze, 2012). Em Bergson (2006), o real só é impenetrável em função dos hábitos convencionais e espaciais da inteligência e da linguagem, que recortam e freiam o movimento em favor de uma representação limitada aos pontos de parada (tratadas como a ilusão cinematográfica do pensamento). O método intuitivo bergsoniano compreende outra metafísica, para a qual a realidade não corresponde a uma matéria opaca sublimada por uma tendência mecânica ou por um princípio transcendental, mas a uma instância criadora, limitada, porém aberta aos contornos sinuosos e móveis de uma elasticidade imanente. Há um “sentido movente que atravessa as palavras”, um “ritmo da linguagem” que reproduz o “ritmo do pensamento” (Bergson, 2009, 46). Essa imanência rítmica é a própria espessura da duração das coisas, mergulhadas em um movimento incapturável ao juízo sintético e à predicação dos lugares proposicionais, mas acessível à intuição e ao espírito que se desprende das limitações de um “tempo pulsado” (Deleuze, 2007, 265). Entre o kantismo e o bergsonismo há dois modos distintos de metafísica e dois séculos distintos, cujas pontas são amarradas, de um lado, pela embriaguez de um Esclarecimento sem dialética e, de outro, pela Ciência do irracional, cujo miolo comprime e abriga a tempestade romântica, as imposições da civilização industrial e a emergência do simbolismo. Se a primeira foi chave para a constituição das tradições contratuais do homem moderno, branco, civilizado, a segunda retoma outras “linhas de fatos” (Bergson, 2009, 4), também transformadas em tradições, mas que induzem os regimes semióticos significantes a processos de deriva não representacional. Na mesma entrevista em que se confessa um kantiano comum, Lévi-Strauss homenageia Bergson, postulando a identidade entre o texto do filósofo e as palavras de um Sioux. “Bergson medita sobre problemas metafísicos como um índio poderia fazê-lo e como efetivamente os Sioux o faziam” (Lévi-Strauss & Eribon, 2005, 167-168).
4. Gilles Deleuze e a Lógica do sentido
Tomando em mãos as mais antigas e recentes leituras realizadas sobre a obra de Gilles Deleuze, notar-se-á um relevo especial que regularmente ganha destaque nas compilações e obras de comentário: há um ponto de virada, ou, mais particularmente, de “viragem” e “passagem”, nas pesquisas do autor, situado entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970, pelo qual ele haveria escapado a um “impasse provisório” que consistia na sobreposição entre a crítica e a clínica ou no conflito entre as “reivindicações opostas do perverso e do esquizofrênico” (Alliez, 1996, 22-23; Gil, 2008, 159-179; Lapoujade, 2015, 121-145). Tal virada pode ser apreendida por diferentes ângulos: o do encontro com Guattari, o das turbulências históricas-intelectuais no maio de 68 francês, o da renovação das apostas éticas e teóricas que sinalizavam as vias de abandono do estruturalismo, ou, ainda, o imanente à própria produção deleuziana. Mudanças de eixo e do redimensionamento da problemática, exemplificadas pela diferença das operações de pesquisa que posicionam, de um lado, Diferença e repetição e Lógica do sentido e, de outro, os dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia, especialmente, Mil platôs. É provável que tais angulações, mencionadas aqui isoladamente, se sincretizem de algum modo no emaranhado sempre complexo que desencadeia uma crise do pensamento. É do próprio Deleuze a afirmação de que há uma coexistência entre crise e criação, e que é através dela que o pensamento é levado a passar de um ponto a outro, dos pontos às linhas, das séries às máquinas. Na passagem entre os livros Lógica do sentido e Mil platôs, encontra-se os limites do repertório analítico, a relevância de uma inteligência topológica e, sobretudo, a sutileza das operações envolvidas em toda atividade de pesquisa. Acreditamos que o jogo dos contrastes entre os movimentos realizados nesses dois diferentes livros, embora já suficientemente apresentado pela crítica, ainda seja capaz de produzir efeitos imprevistos, “acontecimentos”, e não “fatos acontecidos” (Zordan, 2019, 62).
Lógica do sentido, livro escrito em 1969 paralelo à obra doutoral Diferença e repetição, esboça uma teoria do sentido a partir de séries de paradoxos. O livro é organizado em 34 capítulos, cada qual correspondendo a uma série diferente de paradoxos; as 34 séries são precedidas por uma pequena introdução e sucedidas por um apêndice de 5 capítulos (cuja leitura se mostra essencial para a topologia da obra); uma imensidão variada de fontes (literárias, filosóficas, matemáticas, psicanalíticas), tratadas por Deleuze como figuras históricas, tópicas e lógicas, povoa cada uma das séries e cria, em filigrana, uma espécie de céu constelado através do qual cada ponto existente numa série é capaz de remeter ao ponto de outra, formando a trama labiríntica de uma “história embrulhada” (Deleuze, 2015, 8).
Dessa arquitetura formal, interessa-nos destacar especialmente duas particularidades: a) a relação estabelecida no livro entre filosofia e literatura e b) o modo como tal relação contribui para produzir uma inovação na própria linguagem filosófica. Embora o livro seja povoado por uma infinidade de figuras, há entre elas duas que são privilegiadas: os romances de Lewis Carroll e a imagem do filósofo estoico. Carroll, escritor e professor de matemática, encarna, por meio de seus escritos e apotegmas, o poder antecipatório e precursor da literatura em relação ao passo mais lento das teorias. Em seus livros, a teoria do sentido como paradoxo é incorporada, desfilada por personagens em movimentos que desafiam os postulados clássicos da recognição. Em Carroll, “pela primeira vez, a literatura se manifesta como arte das superfícies, disposição de planos” (Deleuze, 2007, 73). Já a imagem do filósofo estoico convida ao voo da filosofia para fora do problema circular identidade/não identidade, contradição/não contradição, criando uma área de escape em relação ao jogo de remissões recíprocas entre o inteligível platônico e a física pré-socrática. Via um entrelaçamento particular, Lógica do sentido realiza uma aproximação entre filosofia e literatura e produz, a partir desse movimento, uma ruptura e uma inovação expressiva, pois os signos, agrupados e reagrupados, diferentemente ligados e rearticulados pela escrita de Carroll e pelas operações estoicas, deixam de ilustrar simplesmente as coordenadas ontológicas e predicativas de uma filosofia a priori, passando a deslocar as coordenadas topológicas nas quais se move a própria imagem do pensamento. Tal movimento, cujo impacto experimental ainda estamos longe de absorver por completo, faz com que o livro permaneça atual, destarte mudanças de perspectiva redesenhadas ao longo da vida pelo próprio Deleuze.
Ao mesmo tempo que as duas fontes privilegiadas no livro formam seus principais pontos de apoio e articulação, elas evidenciam, para além da arquitetura escritural, a pertinência cada vez maior adquirida pelo cruzamento entre filosofia e literatura na paisagem intelectual. Ao final de uma pequena introdução, o filósofo Deleuze afirma que “o livro é um ensaio de romance lógico e psicanalítico” (2015, 8). Abre-se, assim, uma nova situação expressiva, uma cruza de elementos que complica a pretensão à pureza analítica e aos limites epistemológicos envolvidos na construção das fronteiras e zonas disciplinares. Um livro de filosofia lido como romance, abrindo, entre a filosofia e a literatura, uma zona indiscernível de escavação, de exercício atlético em relações de expressão, pela qual Carroll e os estoicos não se opõem mais “de um lado” e “de outro lado” de uma fronteira disciplinar, mas se compõem e decompõem para formar o plano de univocidade onde o sentido circula como uma “entidade não existente” (Deleuze, 2015, 7). Em termos epistemológicos, o embrulho assumido da história contada por Deleuze direciona a pesquisa filosófica para a prospecção de novos meios expressivos e deixa a marca, na filosofia contemporânea, da busca de uma linguagem “intensiva”, que funciona mediante “pequenas rajadas” (Deleuze, 2007, 74). O enlace entre a literatura de Carroll e a filosofia estoica permite a Deleuze testar, pela primeira vez, “uma forma expressiva diferente da filosofia tradicional” (Deleuze, 2007, 73), o que será desenvolvido mais tarde, com a defesa das operações que movem um discurso filosófico nômade ao encontro de meios expressivos implicados em uma “relação com o fora” e com um “estado de forças”, como ocorre no “poema de Zaratustra” ou nos aforismos de Nietzsche (Deleuze, 2006, 322-323). Assim, embora Lógica do sentido recorra ao repertório da linguística e da psicanálise como grandes chaves-explicativas, operando sobreposições crítico-clínicas, interessa-nos sobretudo a abertura dos cruzamentos expressivos entre filosofia e literatura e a própria experimentação de um estilo expressivo singular.
Em uma abordagem retrospectiva da obra de Deleuze não é difícil assinalar as pistas, movimentos e figuras de Lógica do sentido que serão em seguida abandonadas pelo autor. Enquanto o Anti-Édipo (Deleuze & Guattari, 2011b) trata de enterrar toda a parafernália significante do inconsciente psicanalítico e da linguística estrutural, Mil platôs já realiza a própria dinamização de um novo viés paradigmático, que pode ser dito pós-estruturalista e que se apresenta tecnicamente pelo conjunto de operações ético-estéticas associadas ao pensamento das multiplicidades (Deleuze & Guattari, 2007). Enquanto o problema de uma teoria do sentido era o de uma espécie de móbile neutro e vazio, instância do ponto paradoxal que percorria a linguagem em duas direções ao mesmo tempo (Deleuze, 2015), o problema metodológico levantado e resolvido por uma teoria das multiplicidades é o de como realizar uma mixagem de múltiplas linhas, combinando materiais heterogêneos que já não se preocupam em ser ou significar. Sob certos ângulos, pode-se considerar Lógica do sentido como um romance clássico que pavimenta caminhos e dimensões filosóficas mais ou menos tortuosas a serem vencidas pela virtude do herói. Mas, embora um Hércules-Édipo estoico-psicanalítico triunfe sobre os abismos da profundidade, a dinâmica do sentido é paradoxal, e as chaves de resolução da trama se multiplicam como as escadas de Escher e bibliotecas de Borges, dificultando a cristalização de um desfecho simplificador até fazer causa comum com as estranhas atitudes dos personagens de Pierre Klossowski (que já são personagens ao avesso), as inversões do Robinson Crusoé de Michel Tournier (anti-personagem por excelência) e o perigoso estatuto do simulacro em Platão. Em todos os casos, o procedimento consiste em fazer passar a identidade do conceito ao avesso, além do limite predicativo e da fixação referencial, e extrair um duplo ideal que perverte a idealidade do original. Assim, o outro lado da Ideia platônica revela como seu duplo o sinuoso reino do “simulacro” (Deleuze, 2015, 295-298); o Robinson/Sexta-feira de Tournier abriga a vertigem e os limbos de um “mundo sem outrem” (Deleuze, 2015, 370); o Baphomet de Klossowski apresenta, do outro lado de Deus, a figura do andrógino e do “príncipe das modificações” (Deleuze, 2015, 345). Os personagens, que poderiam servir como elementos indicativos de uma moral da história, acabam funcionando como reversões que apontam para o próprio avesso da significação. E o avesso não é a “negação”, mas a indiscernibilidade entre o Ser e o Problema (Gil, 2008, 49).
Lógica do sentido funciona como um romance patafísico (Jarry, 2016), pela capacidade de tornear os limites da linguagem a ponto de fazer o sentido nascer do não sentido e estourar em diferentes séries paradoxais, enquanto Mil platôs, como seus próprios autores sugerem, é uma espécie de grande bricolagem pós-cubista com inspirações dadaístas. Nessa “virada” no pensamento deleuziano, o problema estruturante do signo linguístico dá lugar aos agenciamentos coletivos de enunciação, onde o problema das estruturas do inconsciente, fossem elas organizadas em torno das operações edípicas ou dos morfemas lacanianos, é substituído pela produtividade das máquinas semióticas assignificantes, desejantes, esquizofrênicas. Se na passagem entre Lógica do sentido e Mil platôs as figuras de Édipo e Hércules, por exemplo, perdem os seus direitos, há, por outro lado, figuras que os recuperam: Artaud, Dioniso, Heráclito: todo cortejo colado ao bloco da psicose ganha o direito de dançar numa superfície que não opõe Artaud e Carroll, mas combina Artaud e Michaux para tocar na matéria melódica de linhas abstratas que escaparam aos dispositivos rastreadores do significado.
Mil platôs é o ácido lisérgico dos livros. Ele torna estúpida e obsoleta toda a querela metodológica das dimensões apresentada em Lógica do sentido. O profundo e o superficial, o aparente e o estruturante, o significado e o significante. Todos esses jogos de esconde-esconde são derretidos pelos autores do livro ao promoverem, em uma única e mesma dimensão, por exemplo, o encontro entre as operações da duração bergsoniana, o tempo não-pulsado da música de Pierre Boulez e os personagens literários de Carlos Castañeda (Deleuze & Guattari, 2012b). O resultado obtido no processo é que a matéria, livre da ação restritiva do conluio entre segredos ocultos e decifradores de segredos transcendentais, passa a correr em linhas multitudinais. O que acontece se abdicamos dos pressupostos implícitos que lançamos mão a todo tempo para fazer a realidade passar para dentro de sistemas referenciais? Já não se trata de substituir um sistema de referência por outro melhor, mas de colocar em suspeita o próprio procedimento.
Considerando ora seu gigantesco tecido citacional, ora seu princípio desnorteador de funcionamento, o livro Lógica do sentido, patafisicamente falando, deve ser lido e relido em sentidos ausentes, escrito e reescrito em esquifes flutuantes, assim como todos os outros, como uma sorte de objeto sempre excepcional, defeituoso e inesgotável. Deleuze dizia que os livros não são necessariamente superados, mas conservam uma “vigência deslocada” e necessitam apenas de um “leitor benevolente para devolver-lhes sua atualidade e outorgar-lhes um prolongamento” (Deleuze, 2007, 73). O entendimento da passagem entre uma obra e outra não implica o necessário abandono da obra ultrapassada, até por que as ultrapassagens, em nome da pressa dos atributos teleológicos que conferem destino final a uma obra, acabam por deixar para trás um vasto repertório de paisagens inexploradas e possibilidades hipertextuais. Lógica do sentido, com sua constelação de pontos que remetem a outros pontos internos, e mesmo a pontos que abrem o livro para saída externas, guarda no seu tramado labiríntico a virtualidade de um traçado inesgotável.
5. Hermes, a literatura e os paradoxos
Umberto Eco, após apresentar a noção de “limes”, “limite” e a “obsessão pela fronteira espacial” como marcos fundadores do sentido jurídico-contratual da herança cultural greco-latina, argumenta outrossim que “o mundo grego sempre fora atraído pelo infinito, que não tem limite nem direção, e pela figura de Hermes”, ressaltando que “no mito de Hermes os princípios de identidade, de contradição e do terceiro excluído são questionados” (2013, 549-550). Em uma de suas últimas teses, Eco defendia que há uma relação entre o “modelo da semiose hermética” e as “teorias de interpretação textual atuais” (2015, 30-32). Contemporaneamente, uma das maneiras como se contestou não somente os princípios da identidade e da contradição, mas também a exclusão lógica do terceiro termo, foi através da literatura e, mais particularmente, da emergência da literatura como questão filosófica.
Em conferência pronunciada em 1964, Michel Foucault situa historicamente na virada entre os séculos XVIII e XIX a emergência da questão. Não mais uma determinada configuração de linguagem, “passiva”, simples gênero ficcional de “saber e memória”, mas um “terceiro termo”, “ativo”, “obscuro” e “profundo”, “vértice de um triângulo por onde passa a relação da linguagem com a obra e da obra com a linguagem”, ou, ainda, “ponto de exterioridade em relação à linha reta entre a obra e a linguagem”. “Terceiro termo”, (ponto) de exterioridade, não lugar onde se redesenha incessantemente a “brancura essencial” da questão sobre o próprio ser da linguagem (Foucault, 2005, 140-141). “Segundo Michel Foucault, existe na linguagem uma espécie de distância essencial, de deslocamento, de desmembramento ou de rasgão” (Deleuze, 2006, 100-101), um “vazio” aberto no interior das palavras, cujo preenchimento e a transposição dão a ver o modo como uma instância paradoxal age sob toda repetição.
Bordejando o rasgão do próprio tecido, a presença de Hermes na tradição intelectual ocidental não seria uma forma de negar à linguagem seu caráter predicável, mergulhando o poder designativo na impotente negação, mas uma insistência no forro do ladrão, no “logro” do texto, como queria Barthes (2013): uma zombaria sublime, que consiste no exercício metódico da não exclusão do terceiro, da sua aspersão por n ramificações onde cintile o sentido como um puro expresso radiante. Tal é o estatuto complexo atribuído por Deleuze ao sentido em Lógica do sentido, obra na qual já se destaca a diferença de natureza entre representação e expressão (Deleuze, 2015, 169-170). Embora os esquematismos sistematizadores da psicanálise e do estruturalismo ainda estejam presentes no livro, já há um pensamento dimensional e um traçado de dimensões disjuntivas como que a corroer por dentro a função estruturante dos invariantes de leitura. No entanto, é somente em Mil platôs que a crítica aos postulados da linguística estrutural chega a formular uma objeção mais séria às assimilações operadas pelo paradigma estruturalista entre expressão e significação. Essa objeção se explicita quando Deleuze e Guattari criticam a posição restritiva que Hjelmslev impunha ao “plano de conteúdo” ao assimilá-lo necessariamente ao significado (2011, 59). A estratégia adotada pelos autores consiste em apontar por várias vias os limites das abordagens que separam ou identificam elementos linguísticos e não linguísticos. Por um lado, a separação dos elementos linguísticos dos não linguísticos funciona como base para a legitimação científica da linguística estrutural (e, secundariamente, como balizador da distinção axial entre poética e linguagem). Somente pelo isolamento de sistemas homogêneos seria possível chegar a um conjunto de elementos invariantes, os quais, por sua vez, seriam imprescindíveis a uma abordagem que postula uma cientificidade de direito. Em outras palavras, o fato da língua corresponderia à uma multiplicidade heteróclita de variáveis incontroláveis, e, contra essa multiplicidade de fato, uma ciência linguística de direito arvora um sistema homogêneo, capaz de decompor as variáveis factuais em mínimos elementos constantes (significantes).
Embora haja diferentes níveis nos quais o problema da língua se coloca, Deleuze e Guattari insistem que os pares nos quais ele se organiza sempre repercutem a repetição axial dessa mesma operação no tratamento das variáveis (Deleuze & Guattari, 2011). Por outro lado, os autores também apontam os limites das abordagens que identificam os elementos linguísticos aos não linguísticos, desviando do problema da língua sem resolvê-lo, repercutindo cientificamente a acomodação do senso comum à auto evidência lógica de uma natureza instrumental da linguagem. Nesse caso, a força do recurso ao estoicismo consiste justamente na manutenção de um caráter paradoxal do sentido, que, em vez de se cristalizar pela separação ou identificação dos planos linguístico e não linguístico, implica-os, simultaneamente, em relações de independência e intervenção recíproca (Deleuze & Guattari, 2011, grifos nossos). Por um lado, o sentido “não existe fora da proposição que o exprime”; por outro, “ele não se confunde de forma nenhuma com a proposição, ele tem uma ´objetidade` totalmente distinta” (Deleuze, 2015, 33).
A tradução brasileira de Lógica do sentido se equivoca ao utilizar a palavra “objetividade” para “objectité”. Para definir o “estatuto complexo do sentido”, Deleuze cria uma palavra inexistente na língua francesa: “objectité”. Sobre o sentido, ele escreve: “Mais d`autre part il ne se confond nullement avec la proposition, il a une “objectité” tout à fait distincte” (Deleuze, 2015, 33). Ao traduzir “objectité” por “objetividade”, perde-se precisamente a nuance da discussão, pois se tal escolha fosse efetivamente justificada, o próprio Deleuze não teria a necessidade de utilizar uma palavra inexistente e optaria simplesmente pela palavra francesa, existente, “objectivité”. Por que, então, utilizar “objectité” em vez de simplesmente “objectivité” (o que nos obrigaria a optar, na tradução, por “objetidade”, e não “objetividade”)? Trata-se da marca de uma escrita imprecisa substanciada em um gosto particular pelos neologismos? O que sugerimos é precisamente o contrário. O problema tradutório evidencia a própria dificuldade de compreensão do estatuto complexo do sentido. Atribuir-lhe o sentido de “objetividade”, como consta na tradução brasileira, implicaria subsumi-lo à dimensão da significação, o que precisamente Deleuze não faz, nem mesmo quando compara o sentido ao “noema perceptivo” de Husserl. É por essa “objetidade” distinta que se diz que o sentido não pode corresponder ao atributo lógico da proposição (que é o predicado), mas somente ao atributo lógico da coisa. Por não ser um atributo predicável, o sentido não se confunde com um estado de coisas designado, nem com a qualidade específica atinente a um ser. Fora do círculo da proposição, escapando ao jogo entre atributos predicáveis e sujeitos predicados, o atributo do sentido, segundo esse Deleuze leitor dos estoicos, é um “extra-ser”, “aliquid”, um “mínimo de ser” que convém a uma instância que circula na “fronteira das proposições e das coisas” (Deleuze, 2015, 34, grifos do autor).
Assim, o problema da linguagem se apresenta ora como uma operação de redução e coordenação de variáveis em direção a constantes significativas (limitações impostas a um real impenetrável), ora como abertura do eixo sistemático das constantes a uma enxurrada de variáveis que mergulha a matéria no intercâmbio imanente entre um estado recíproco de esgotamento e multiplicação (insistência nas operações de abertura de um real ilimitado). A postulação apresentada aqui baseia-se na hipótese de que a contraprova das operações que regem o juízo sintético não é o idealismo romântico, mas o exercício paradoxal do sentido, ou, em outras palavras: Lewis Carroll, Alfred Jarry, Samuel Beckett. “Beckett levou ao mais alto grau a arte das disjunções inclusas, que já não seleciona, porém afirma os termos disjuntos através da sua distância, sem limitar um pelo outro nem excluir o outro do um” (Deleuze, 2011, 142). Barthes dizia que “alguns autores funcionam como matrizes de escrita” (2005, 23). Os textos de Beckett dramatizam, como nenhum outro, os paradoxos do sentido e os epifenômenos textuais que brotam da relação de descolamento entre o sentido e o significante, a ponto de comentaristas contemporâneos sugerirem sua retomada. “Seguindo a trilha de Deleuze, não deveríamos repensar o esgotamento, hoje, segundo categorias beckettianas?” (Pelbart, 2016, 20). Há, nessa consideração de Pelbart, assim como nas reiteradas invocações de Beckett por Deleuze, a constatação de que essa matriz de escrita guarda em suas operações a força de um potencial enigmático, uma espécie de código inesgotável que o arquivo da literatura disponibiliza aos processos de transcriação (Campos, 2013). Aqui, as categorias beckettianas interessam menos que o potencial cáustico e plástico de uma escrita capaz de introduzir tensores que trabalhem distâncias entre o significante e o sentido. Ninguém é capaz de garantir exatamente o que uma “escrita perdulária” ou a infecção da linguagem protocolar por um estado de “enfermidade verbal” são capazes de gerar em termos de produção de conhecimento. Sabe- se, no entanto, “que há algo nos moribundos e na ficção” (Costa, 2014, 554), e nossa aposta é que esse “algo” pode ser capaz de romper eventualmente a fronteira entre o “nomos” e a anomia (Lapoujade, 2015, 60-61, grifos nossos), produzindo paradoxos.
Um desses paradoxos consiste na aproximação/sobreposição de duas diferentes disciplinas, cujas oposições se destacam à primeira vista: a filosofia, com o exercício do pensamento sistemático e a tendência a separar dos corpos a instância homogênea de um real inteligível, e a literatura, essa verdadeira “mestra de nuances” (Barthes, 2003, 27), cujo exercício se apresenta contemporaneamente ao modo de uma ética do singular, espaço de uma incerteza sem resposta onde fabrica-se, ainda assim, as linhas de virtualidade de um sujeito futuro. Sob todos os ângulos, os direitos de um real inteligível parecem desafiar as possibilidades de uma ética singular. Como um apotegma cristalizado entre essas duas disciplinas, instala-se o problema do sentido como instância que insiste em desdobrar o “círculo da proposição” (Deleuze, 2015), e, ao desdobrá-lo, encontra uma literatura cujas relações de proximidade simbióticas com a filosofia acaba por rearranjar os sentidos e os domínios dessas duas atividades.
“Seu poder moderno faz da literatura um antídoto à filosofia, um contra-sistema ou uma contra- filosofia (...) Para mim, Nietzsche, Bataille, Blanchot, Klossowski foram maneiras de sair da filosofia” (Compagnon, 2018, 49-51). “Ora, se Nietzsche não pertence à filosofia, é talvez porque ele é o primeiro a conceber um outro tipo de discurso como contrafilosofia” (Deleuze, 2006, 327). Mas não se sai da filosofia sem produzir simultaneamente uma reentrada em seus caminhos paralelos, futuros-passados divergentes, como no “poema da matéria” de Lucrécio, composto de corpúsculos invisíveis que se desviam “imprevisivelmente da linha reta” e cuja “poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nascem de um poeta que não nutre qualquer dúvida sobre o caráter físico do mundo” (Calvino, 2012, 20-21). É esse rearranjo que permite se situar entre a literatura e a filosofia e procurar, por meio de exercícios reiterados, a plasticidade sempre reinaugurada de uma zona transdisciplinar. Nesse ponto, já não se trata mais de opor lógico e fantástico, real e imaginário, metalinguagem e ficção.
Ao interrogar-se sobre o sentido da escrita e da literatura, Deleuze costumava invocar a pertinência de uma instância assignificante, pré-individual e impessoal. Escrever seria um “caso de devir” que extravasa o “vivível” para alcançar puras visões e audições (Deleuze, 2011, 11), caso de “sair das percepções vividas” (Deleuze & Guattari, 2010, 198); e a escrita, o espólio arrancado a uma zona transcendental onde já não há primeira nem segunda pessoas a se manifestar, mas “nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu” (Deleuze, 2011, 13), ou mesmo uma “quarta pessoa do singular”, onde sentido e não sentido subsistem na “copresença de uma gênese estática” (Deleuze, 2015, 166). “Tudo o que tem o desejo como conteúdo se expressa mediante um IL, o ´il` do acontecimento, o indefinido do infinitivo nome próprio” (Deleuze, 2007, 89). Na língua francesa, a palavra “IL” não é apenas a forma particular assumida pela terceira pessoa do singular, mas o modo das construções verbais impessoais (como il pleut, ou il y a), sentido este privilegiado pela definição de Deleuze. Tais considerações em torno ao lastro impessoal da terceira pessoa repercutem, ademais, as conexões estabelecidas por Blanchot entre a literatura e o tema da neutralidade. “´Ele` sou eu convertido em ninguém, outrem que se torna o outro, e que, do lugar onde estou, não possa mais dirigir-me a mim e que aquele que se me dirige não diga ´Eu`, não seja ele mesmo” (Blanchot, 2011, 19). Modo de dizer que “não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose, não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado” (Deleuze, 2011, 14).
6. CONCLUSÕES
Suspender as circunscrições da dualidade platônica e da finalidade aristotélica para postular uma zona de indiscernibilidade transdisciplinar não é libertar-se das amarras da cultura para fruir o transe de uma espontaneidade reencontrada, mas abrir o verbo a um outro tipo de problema, com outra modalidade de riscos associados. Há o risco de linhas que se soltam de seus limites contratuais e significantes serem anuladas, já não pelos efeitos de controle e segurança de um imperativo moral ou pelas promessas de uma capitalização externa, mas pelas incertezas internas de uma língua que chicoteia sua própria matéria e teme os percursos da sua própria causalidade. Envolvida pela aproximação axial entre uma imagem da filosofia estoica e a literatura de Lewis Carroll, Lógica do sentido apresenta uma física (patafísica), uma dialética (paradoxal) e uma estética (da disjunção exclusiva ou dos silogismos de disjunção) que deslocam a imagem da filosofia e o sentido da literatura tradicionais. Diante das aporias e paradoxos evidenciados pelos debates teórico-epistemológicos aqui sumarizados e, em particular, pelo estudo da Lógica do sentido, conclui-se que, pelas vias de uma física, uma dialética e uma estética, comprimido entre as dimensões da literatura e da filosofia, o problema do sentido e da sua inscrição na linguagem é submetido a uma nova espécie de educação, cujas operações promovem a verificação contínua de um duplo movimento que afirma ora a precedência das relações de expressão do sentido sobre as outras dimensões da proposição, ora a ambiguidade das relações de coexistência entre o plano dos corpos e estados de coisas e o plano dos textos. No que aqui se apresenta, as distinções entre Ciências Humanas e Letras, Linguística e Artes, a qual podemos, a guisa de conclusão, tratar de uma contingência histórica perante o imperativo que define “áreas de conhecimento”, se demonstra inoperante quando se trata das forças paradoxais que movem o indiscernível do pensamento.