INTRODUÇÃO
Em 1937, Lévi-Strauss (2019 1937 :21) profere discurso a trabalhadores de um sindicato francês, em que trata da “ethnography as a revolutionary science”, da “revolutionary nature of ethnography” e de sua percepção desse campo como “personal experience”.
O autor dos trechos é um antropólogo europeu que desenvolveu, em alguns poucos períodos de trabalho de campo no Brasil, uma longa reflexão científica de construção de um conhecimento específico a partir desses materiais.
O artigo em tela tem como objetivo e é motivado por uma discussão da experiência individual e da prática profissional no campo da produção do conhecimento arqueológico/histórico de pessoas/pesquisadores do centro-sul brasileiro.
Por meio desse ânimo: abre-se um caminho de discussão que perpassa a construção do corpo do arqueólogo, primeiro como sujeito em um local/espaço/país, e segundo, como agente ativo de sua imaginação individual/científica/arqueológica.
É considerando essas questões, que se passa a uma revisão dos paradigmas arqueológicos vigentes, intermediada por uma discussão sobre modelos teórico-metodológicos e interpretativos - esquemas muito presentes nas falas e textos da arqueologia - confrontada com uma realidade histórica local, e a de uma formação do povo e das pessoas da América Latina, da América do Sul, e do Brasil.
METODOLOGIA
A metodologia utilizada neste artigo consiste em uma revisão/revisita bibliográfica, não minuciosa, centrada em etnografias (v. Lévi-Strauss, 2019 1937 ; Ellingson & Ellis 2008) das práticas arqueológicas e das ciências humanas, em uma historiografía (v. Galloway 2006; Taylor, Bogdan & DeVault 2016) parcial da produção acadêmica brasileira; bem como na teoria da ciência/conhecimento (Bloor 1998), assim como apresentada por seu programa forte - tanto para as questões da “experiência” “individual” (:62), do pesquisador , e dos outros; quanto aos da produção do conhecimento científico.
Busca-se uma representação das questões da apreensão na experiência humana individual, centrada na localidade e historiografia da pessoa, pela sua proximidade com um campo, no caso o latino-americano, e pela construção e acúmulo de informações e saberes relacionados às questões cognitivas do conhecimento - como a etnografía em (Ellingson & Ellis 2008:449), “
.social constructionist approach that enables critical reflection on taken-for granted aspects of society, groups, relationships, and the self” e seu caminho como “a space in which an individual’s passion can bridge individual and collective experience to enable richness of representation, complexity of understanding, and inspiration for activism
E, retomando ao jovem Lévi-Strauss (2019 1937 :21, 23) - também como definição da etnografia percebida aqui, como exemplo de sua experiência individual para a discussão que se segue, e por sua proximidade e construção específica de relação de alteridade, no tempo e espaço, com os materiais latino-americanos e brasileiros (cf. Peixoto 1998; Souza & Fausto, 2004) - e de como essa materialidade é dada na fala desse autor, os “precious documents” “for the ethnographer”.
A proposta é diretamente regida por uma historicidade dos materiais bibliográficos dos temas aqui tratados, associados a atuação pública e produção acadêmica de diversas instituições: Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Goiás (UFG); Museu Antropológico/UFG; Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena/UFG; Universidade Federal do Tocantins (UFT); Centro de Desenvolvimento Sustentável, da Universidade de Brasília (UnB); Instituto de Letras/UnB; Instituto de Ciências Sociais/UnB; Instituto de Estudos Latino-Americanos, da Universidade Federal de Santa Catarina; Museu de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo (USP); Núcleo de História Indígena e do Indigenismo/USP; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.
Assim, o pano de fundo e objetivo tratam de uma construção delineada pelo pensamento brasileiro das ciências sociais e da arqueologia, centrados em alguns desenvolvimentos de suas duas últimas décadas.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Estabelece-se aqui uma premissa historiográfica para a discussão que segue: o constante revisionismo crítico da história das pessoas e dos povos do mundo é fator essencial para o entendimento de suas dinâmicas socioculturais e de formação.
A ideia da materialidade da história como registro do passado e da limitação da capacidade dos atores que a contam ao abraçar essa materialidade - e a revisão como reformulação constante do conhecimento produzido a partir do conhecimento acumulado, por meio dos paradigmas epistemológicos em vigência, com atuação distinta em diferentes momentos/tempos.
Ao conhecimento acumulado pela experiência dos atores/pesquisadores existe ainda um campo de reflexão que sobrepassa o espaço das epistemologias.
No campo da história, e em sua materialidade estratigráfica - recorta-se a questão brasileira, em discussão no âmbito da formação dos povos americanos. O ponto de partida trata da rede intrincada de uma formação latino-americana e de sua materialidade na história do mundo (Bomfim 2013; Dussel 1994; Gonçalves 2016; Gonzalez 1988; Ribeiro 1988).
Para tanto, Quijano (2014a:801-802) aponta para uma história “muy distinta”: da colonização dos povos da América e de sua aglutinação em categorias generalizantes; com a composição da “primeira identidad geocultural moderna y mundial”, em contraposição a uma segunda, a da Europa - constituída com o sacrifício da primeira (exploração do trabalho, apropriação tecnológica, obtenção de produtos locais, etc.). E, sua percepção política da experiência, a partir de uma reflexão epistemológica do processo político latino-americano (Quijano 2014a:827-828):
.No es, pues, un accidente que hayamos sido, por el momento, derrotados en ambos proyectos revolucionarios, en América y en todo el mundo. Lo que pudimos avanzar y conquistar en términos de derechos políticos y civiles, en una necesaria redistribución del poder, de la cual la descolonización de la sociedad es presupuesto y punto de partida, está ahora siendo arrasado en el proceso de reconcentración del control del poder en el capitalismo mundial y con la gestión de los mismos funcionarios de la colonialidad del poder
Neste contexto é incongruente pensar uma história nacional, seja brasileira e/ou dos países latino-americanos vizinhos, sem a incorporação das histórias indígenas locais e das histórias dos povos em diáspora, considerando os povos africanos, forçadamente deslocados, e os povos colonizadores, exploradores e expropriadores.
À construção do pensamento arqueológico local, regional e nacional não cabe a/o exclusão/afastamento desses povos em sua discussão; a eles, as epistemologias que contribuem para a produção histórica do conhecimento humano, devem sua atenção e interesse.
Sob risco de não considerá-los, existe uma perspectiva de manutenção de disciplinas sem-crítica, não-reflexivas; sem-diálogo com seus povos originários/formadores.
Abre-se, então, um pequeno complemento sobre a formação de alguns dos paradigmas epistemológicos das ciências humanas. Recorta-se aqui a disciplina arqueológica e o pensamento arqueológico em referência ao estabelecimento de seus três paradigmas principais (Trigger 2006; para perspectivas da arqueologia brasileira, v. Alves 2002; Barreto 1998): histórico-cultural, processual e pós-processual.
No final do século XIX, o paradigma predominante trata da coleta de dados empíricos e de questões indutivas para a construção de uma história da(s) cultura(s) (e.g. Childe 1925).
A partir da década de 60 do século XX, tem-se o processualismo, em termos de uma possibilidade de construção do conhecimento, por meio de programas teórico-metodológicos, que dariam um caráter científico à disciplina arqueológica, o novo conhecimento estabeleceu-se no âmbito de uma nova arqueologia (e.g. Binford 1965).
Uma referenciada transição dos programas de produção do conhecimento, está permeada pelos novos paradigmas surgentes nas décadas anteriores e nesse momento/período: evolucionismo cultural/neoevolucionismo, funcionalismo, materialismo, positivismo lógico/neopositivismo, objetivismo, teoria dos sistemas, linguística e ecologia cultural (e.g. White 1975), associados a questões levantadas por problemas e modelos hipotético-dedutivos.
Em fins da década de 1970 e início da de 1980, surge o pós-processualismo, também como crítica ao antecessor (o processualismo), por meio de uma confluência de temas e questões objetivas e subjetivas dos paradigmas anteriores, em novas questões apontadas por correntes das ciências humanas, em transformação/revisão, e em surgimento (e.g. Hodder 1982): marxismo/materialismo histórico, modernidade/pós-modernidade, antropologia cultural, estruturalismo, hermenêutica, idealismo(s), antropologia interpretativa, antropologia simétrica, para citar alguns dos caminhos - e em oposição ao conhecimento fundado nos etnocentrismo, racismo, elitismo, colonialismo, marginalização/exclusão, preconceito étnico/de gênero, dominação/submissão.
A crítica pós-processual não elimina os paradigmas anteriores. Continuam, de modo não reflexivo/crítico ou se readequando/reestruturando no âmbito da reformulação apresentada no novo contexto epistemológico.
Bem como, vale lembrar: as distâncias/espaçamentos entre formulações teóricas e realidades práticas, entre o pensar nos termos de processualismos/pós-processualismos em comparação aos dos resultados publicados de uma pesquisa acadêmica, e desenvolvidos sobre uma materialidade arqueológica específica.
Apesar de serem quase sempre associados ao período processual de desenvolvimento da disciplina, os modelos arqueológicos perpassam todos os paradigmas da arqueologia, sendo uma ferramenta de construção do conhecimento manejada pelo arqueólogo. Entendidos como procedimentos explicativos e analíticos da realidade arqueológica e do registro arqueológico, permitiram uma série de inferências de cunho hipotético e preparatório (e.g. a questão da expansão do povo falante da língua Tupi na Amazônia brasileira - Almeida & Neves 2015; Brochado 1989; Milheira & DeBlasis 2014).
Os esquemas estabelecidos no período processual receberam duras críticas por suas características enviesadas, e por serem fins em si, quase nunca confrontados com revisões posteriores. Acusados de deconsiderar contextos dos povos e pessoas estudados, principalmente, quando associados aos modelos evolucionistas e ecológicos culturais, e se distanciando de uma empiricidade histórica.
Como adendo, o que parece importante é aproveitar a materialidade do conhecimento produzido por estes paradigmas e considerar um compromisso ético com os interlocutores/povos originários envolvidos/relacionados no âmbito de uma proposta de pesquisa.
A crítica aos pensamentos nocivos às reflexões das populações/povos locais ocorre de forma generalizada nas ciências humanas, impulsionados a partir de estudos literários realizados entre as décadas de 70/80 do século XX (e.g. Said 1978), bases iniciais para uma crítica anticolonial em contexto global, coincidentes com a emergência, e igualmente formadores da crítica pós-processual.
Inicia-se uma reflexão sobre os indivíduos que produzem o conhecimento arqueológico, suscitando questões éticas e da perspectiva de atuação profissional: nova necessidade de entendimento político da posição e das implicações das interpretações realizadas por não-indígenas, estrangeiros contemporâneos e colonizadores, e, considerando o campo de atuação de trabalho, os profissionais (autônomos, estudantes, servidores públicos, etc.) que se expressam em alteridade a seu espaço de estudo/trabalho.
Uma necessidade de questionamento constante da arqueologia do e para o outro e exposição da arqueologia feita pelo/de outro sobre seus próprios contextos socioculturais.
E de mesmo modo, ocorre um processo (as)simétrico de abertura dos espaços acadêmicos para a consideração dos pensamentos locais, não acadêmicos, tradicionais, amerindios/indígenas, e das relações de alteridade estabelecidas pela interferência/ingerência de países e povos, de relações sociopolíticas e econômicas e do campo das disputas de poder/autoridade.
Evocando uma imagem de espaço apresentada por Smith (2003): a prisão de Sing Sing, em Nova Iorque, nos Estados Unidos; uma representação institucional do sistema prisional daquele país, apresentada em um dos exemplos para sua crítica da paisagem política, por meio da cadeira elétrica de Andy Warhol: neste mesmo local, na década de 1970 reúnem-se para uma performance musical Joan Baez e B.B. King - em uma crítica ao modelo imperialista e de expansionismo armamentista do citado país.
Ocupando esse espaço de controle de corpos marginalizados/encarcerados (uma posição periférica em relação aos não-encarcerados, distante do centro) - Baez e sua irmã (Mimi Fariña) cantam uma composição de Luis Rico, Orlando Rojas, Victor Hugo Leaño, Pepe Murillo, José Zapata e os irmãos Ernesto e Lucho Cavour, a música Viva mi patria Bolivia.
Esse evento histórico é exposto aqui como forma de exemplificar o questionamento crescente das posições de poder dos estados hegemônicos/dominantes/centrais e seu papel de exploração no contexto global. E da potência crítica/reflexiva suscitadas pelas reformulações históricas e epistemológicas insurgentes - nesse contexto representada por uma canção hispanófona performada por cantoras (hispano-)anglófonas em um país e espaço (da cadeia/prisão) oficialmente anglófono, para uma plateia composta em parte por hispanófonos/anglófonos, e outros falantes.
Para uma discussão dos modelos arqueológicos no âmbito brasileiro. Passa-se ao contexto de reposicionamento de voz e perspectiva dos contextos americanos em oposição aos centros dominantes de poder, como forma de reconstruir/revisar criticamente a história mundial/universal contada sem a participação dos povos, pessoas e países explorados/subjugados/colonizados (e.g. Atalay 2012, Habu, Fawcett & Matsunaga 2008), é preciso lembrar histórias esquecidas/apagadas.
As construções hipotéticas, analíticas e interpretativas representadas em modelos, apresentam caminhos a serem confrontados com uma constante reformulação/reflexão/revisão dos dados empíricos/objetivos e subjetivos das pesquisas do presente e do futuro. Não como forma de comprovação de teorias, metodologias, nem como uma necessidade intrínseca de verificação ou validação dos modelos em si; e, sim, como um tipo ideal/idealizado - uma possibilidade de continuidade do processo de análise e interpretação no âmbito de uma construção da história a partir do pensamento hipotético-dedutivo de cunho arqueológico (e.g., a discussão sobre a lógica dos conceitos/fenômenos sociais em Goode & Hatt 1952).
Os modelos inscrevem e delimitam o pensamento arqueológico nos caminhos, restrições e interesses do/a(s) arqueólogo/a(s) que os pensa(m). A definição de modelos está, então, arraigada às perspectivas individuais (da pessoa) e dos esquemas de pensamento situados no corpo do arqueólogo que as/os professa.
Essas possibilidades circunscrevem-se muitas vezes nos etnocentrismos e pensamentos dominantes/hegemônicos/autoritários.
No contexto brasileiro e latino-americano, estas ideias podem ser descritas em termos eurocêntricos/etnocêntricos, em ideais de blanquitud (v. Echeverría 2010:62), no entendimento do tempo da modernidade e do espaço do mundo ocidental e dos centros de poder/autoridade (e.g. Gallois 2004; Quijano 2014a/b).
Define-se a necessidade ética de percepção de uma realidade/materialidade do campo arqueológico produzido a partir de realidades distintas das dos povos originários e que apresentam definições estranhas a cosmologias e pensamentos indígenas/ameríndios (e.g. Machado 2013; Silva 2002, 2012); percepção que também deve ser estendida a contextos das arqueologias contemporânea/do presente/histórica/ particip- ativa quando tratam das narrativas periféricas, não-tradicionais - dentro do contexto hegemônico/central(ais), entretanto, tradicionais em seus contextos locais/afastados.
A composição de uma história indígena demanda uma construção epistemológica a partir dos conhecimentos tradicionais das populações americanas pré-/pós-coloniais e coloniais.
A arqueologia apresenta novas perspectivas de análises e interpretações, como no caso de uma autocrítica pós-colonial/decolonial, e como geradora de outras arqueologias/paradigmas/espistemologias: a exemplo, a arqueologia indígena, etnoarqueologias, a reconstrução das paisagens políticas/históricas/temporalizadas (e.g. Silliman 2015; Smith 2003, 2011; Hamilakis 2016), e numa perspectiva historicista de longa duração, que permite deslocar a análise e a construção dos eventos de curta duração para a questão indígena e das pessoas indígenas (Silva e Noelli 2015).
Todavia, sofre com elementos sociopolíticos associados ao sistema vigente de trocas econômicas em âmbito global, centrado nas apontadas divisões/distinções entre centro/periferias.
São citados aqui como modelos explicativos as ponderações emanadas pelos conceitos de capitalismo, imperialismo, colonialismo, neocolonialismo e neoliberalismo (e.g. Bambirra 2013; Santos dos 2011), e globalização (e.g. Appadurai 2001; Canclini 2015; Santos 2006; Singh, Zhang & Besmel 2012). Traça-se um caminho de continuidade/persistência de marginalização/exterminío das populações originárias, uma desarticulação histórica e destruição de seus modos de produção tradicionais, e uma desarticulação de autonomias políticas.
Uma primeira verificação/contraposição disso na arqueologia pode ser representada pelo abandono/questionamento do conceito de pré-história para as Américas: uma história única, colonizada, possibilitada pelo descobrimento/encobrimento/conquista; marcada pela ausência das narrativas das populações que aqui existiam, e existem, há muito antes da chegada do elemento colonizador (e.g. Dussel 1994).
Torna-se um elemento referencial de uma epistemologia do passado, sempre importante para uma compreensão histórica da produção do conhecimento científico (ou não), quando confrontado com a história daqui - e pode ser, a exemplo, reformulado como outro grande divisor, pré-/pós-colonial. É, portanto, uma definição da história americana como autônoma, que não começa a partir da história europeia/colonial no continente americano.
Cabe ainda destacar a universalidade histórica da realidade americana na composição das bases da exploração (pré-)capitalista a partir dos eventos resultantes do colonialismo europeu nas Américas. Apresentado em Marx (2019), como um elemento crítico/analítico para o que viria a ser a base de retomada e desenvolvimento das sociedades hegemônicas contemporâneas, por meio da exploração das riquezas daqui, e da interrupção irreversível das histórias socioculturais de seus povos originários (ingerência ibérica/europeia).
A dominação colonial europeia e os movimentos (pós-)coloniais resultantes produziram uma reestruturação dos modelos de desenvolvimento locais. Novamente, este movimento caminha em contínua destruição/exploração das populações originárias, fiéis ao objetivo estabelecido na conquista americana (Dussel 1994; Quijano 2014a/b).
O momento pós-colonial trata de uma discussão de espaços de poder entre elementos multi-/pluriétnicos que compõem o panorama atual das culturas e sociedades ocidentais periféricas, materializadas nas histórias locais dos países/pessoas latino-americanos(as). Histórias até hoje encobertas por narrativas dominantes e direcionadas aos interesses hegemônicos.
Uma das imagens fortes das décadas de 1970/1980 trata da ingerência do governo brasileiro sobre o povo Panará (Valente 2017:158) - somam-se aos relatos sobre a resistência Panará perante os conflitos com a sociedade nacional/tradicional brasileira, de expansão das fronteiras de ocupação no sentido sudeste-noroeste, ao sertão e interior do país, ao centro brasileiro e Pará (Barbosa 1918; Ewart 2015; Giraldin 1997; Mead 2010; Schwartzman 1992).
A migração dos Panará, “aqueles que estão humanos”, vindos do leste, “da base do céu, de onde o sol se levanta para nos iluminar”, depara-se com os não-indígenas avançando na direção noroeste - assim como mencionado no Protocolo de consulta do povo Panará (Associação Iakiô 2019:8-14, 24, 28-32; documento de consulta observando a convenção de 1989 da Organização Internacional do Trabalho).
As arqueologias anticoloniais e as que refletem sobre o colonialismo, e a colonialidade (v. Quijano 2014a/b; como proposta de história de longa duração, contínua, do passado ao presente, em substituição a um grande divisor pré-/pós-colonial), aprofundam essa análise dando voz e vez aos grupos indígenas e demais grupos não hegemônicos, bem como as sociedades hegemônicas nacionais latino-americanas (periféricas ao contexto do oeste como re configuradores de suas próprias histórias, até então mascaradas pelas narrativas de poder das sociedades dominantes. Permite uma construção paralela e múltipla de historiografias que partem de paradigmas não coincidentes com as construções ocidentais/tradicionais.
Em exemplo, nos três séculos de colonialismo (de longa duração/contínuo; seja pelo neocolonialismo/imperialismo, seja pela disputa política indígena/não-indígena - nesse caso, somando-se ainda mais de dois séculos): o peso dos paradigmas ocidentais na América Latina é bem representado na discussão espanhola sobre a escravização das pessoas indígenas pré-colombianas, Valladolid nos anos 1550/1551; e, o privilégio do atlântico norte e mediterrâneo (cf. Braudel 2009; Peurcell 2005; Silliman 2015), sobre o pensamento a sul do atlântico e pacífico. Uma autonomia política de decisão/escolha em contextos nacionais é propiciada a partir de uma descentralização da historiografia universal e um novo foco nas histórias locais das populações daqui (de modo crítico/reflexivo).
De modo inverso, também não existe crítica possível ao entendimento de uma construção do pensamento arqueológico (as)simétrico/participativo/colaborativo/anticolonial/pós-colonial sem considerar a influência dos fatos da conquista europeia sobre este continente - elemento fundador do mundo contemporâneo: a remodelação das histórias locais a partir da destruição dos impérios/sociedades/culturas americanas, assim como pontuados por Marx (2019) para a conquista do México e do Peru; a destruição dos modos de produção locais (v. Quijano 2014a/b); a construção dos processos de dependência latino-americanos a países distantes (Bambirra 2013: Bomfim 2013; Santos dos 2011); a(s) historiografía(s) indígena(s) contemporânea(s)/pós/-contato/-coloniais(al).
Para uma alternativa aos povos latino-americanos, à nossa realidade/materialidade histórica: uma consideração da perspectiva histórica indígena do passado pré-colonial. Disciplinas como a arqueologia, antropologia e linguística já bebem das cosmologias e perspectivas indígenas/ameríndias. Os povos daqui, muitas vezes tidos como ágrafos, principalmente, no sentido de que seriam incapazes de transmitir suas histórias locais, colocam em xeque essa concepção diante da potência dos campos revelados em estudos como os de tradição oral (e.g. Cesarino, 2020; Gallois 1994).
Nas décadas recentes, estes estudos baseiam-se em uma catalogação/análise de elementos linguísticos/sociolinguísticos como possibilidades de tangenciar as formas do pensamento tradicional/indígena, bem como dados para a composição da própria história indígena em si (e.g. Barros s.f. 2005 ; Braga et al. 2011; Martins et al. 2015; Moore & Storto 2002; Nikulin 2020), que se desdobra hoje no Brasil em 274 línguas autodeclaradas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2010), aproximadamente 150-160 línguas considerando o cálculo de Glaucio, Moore & Voort van der (2018).
A análise linguística e o trabalho antropológico contemporâneo permitiram, para a composição de gramáticas e sintaxes indígenas (e.g. Seki 2000), uma compreensão maior da potência do(s) pensamento(s) de ao menos 305 grupos indígenas que habitam o Brasil. Estes emprestam(ram), ao longo dos séculos, seus conhecimentos/perspectivas tradicionais à cultura tradicional/hegemônica brasileira (e.g. Barbosa & Devos 2017; Fagundes 2019; Sautchuck 2007).
Essas novas possibilidades confrontam e desconstroem diversos modelos tradicionais da arqueologia, e permitem a construção de outros novos, centrados em perspectivas mais adequados aos contextos indígenas e de suas historiografias específicas (e.g. Cabral 2014; Fausto & Heckenberger 2007; Green, Green & Neves 2003; Hornborg & Hill 2011; Neves 1999, 2006; Santos-Granero 1998; Silva 2002, 2012; Whitehead 2003) - e inspiram novos caminhos, como os bien vivir/sumak kawsay/suma qamaña/teko porã (Bolivia, 2009; Ecuador, 2008; v. Quijano 2014b).
Sucede-se a essa reflexão dos contextos locais indígenas: como forma de conceber a realidade sociocultural assim como ela é, ou de encurtar/aproximar essa distância/percepção/assimetria. Com base numa etnografía (v. Castro de 1996) e no contexto dos materiais amazônicos acumulados até a década de 70 do século XX, a antropologia brasileira produz um conceito interessante, suscitando reflexões sobre os contextos de construção das histórias locais, por meio da tradição oral e do entendimento das línguas indígenas - conceitual, semântico, linguístico, e em questionamento aos parâmetros ocidentais de interpretação da realidade do mundo - o perspectivismo ameríndio.
O perspectivismo apresenta uma nova forma de interpretação da realidade local por meio de uma transição interpretativa de elementos associados ao corpo/cultura, passando à crítica do multiculturalismo, um paradigma antecessor, como ainda sendo uma interpretação etnocêntrica das realidades amazônicas, para então propor uma discussão multinatural, estabelecida a partir de cosmologias/pensamentos não ocidentais, ameríndias(os) (i.e. Seeger, DaMatta e Castro de 1979).
Essas novas possibilidades remetem a uma reinterpretação dos modelos arqueológicos, por meio de uma crítica/ruptura aos modelos construídos no passado, e como movimento/deslocamento/transformação de suas propostas/olhares (por muitas vezes tidos como sistemas finais e universais de interpretação) para lugares intermediários de construção do conhecimento arqueológico hipotético/dedutivo; devem ser inevitavelmente confrontados e regulados/redefinidos por meio e à luz de informações ainda não disponíveis para as histórias socioculturais locais e de dados empíricos ainda não evidenciados pelas pesquisas arqueológicas, elementos que estão sempre em processo de construção.
Em síntese, a crítica à arqueologia no âmbito dos paradigmas coloniais são caminhos para uma autonomia das pessoas, povos, culturas e histórias não-dominantes, por meio de uma discussão sobre subdesenvolvimento/dependência, auto-afirmação/soberania, políticas públicas, identidade/etnicidade, territórios/territorialidades, histórias/culturas locais, dominação/submissão/escravização, decolonialidade/descolonização, patrimônio cultural, etc. - suas transformação(ões)/continuidade(s)/hiato(s).
É preciso pontuar ainda a questão das continuidade e mudança socioculturais, talvez para além da teoria arqueológica: considerando a interessante perspectiva da posição do arqueólogo/pesquisador como ego de seu próprio campo, em um sentido etno- de sua pesquisa, e de mesmo modo, sua posição como pesquisador em um contexto de pesquisa alter, de outro ao seu próprio (alteretno-) - diante dessas posições de distância, proximidade e pertencimento, relacionam-se pontos de uma continuidade no olhar de um ego etno-, e de outro lado, a tradução como mudança no olhar de um outro/alter, que não vivencia o cotidiano, a história local, em longo prazo, mas como interceptações e vivências curtas, e, no caso específico da arqueologia, dos limites das informações possíveis e extraíveis da materialidade dos estratos arqueológicos de um passado distante.
Voltando, podem ser citados como exemplos as experiências epistemológicas relacionadas à atuação de pesquisadores no âmbito das ciências humanas e sociais para uma crítica do acesso à autonomia política pós-colonial/da colonialidade, considerando a construção do conhecimento compartilhado pela interação humana e a proposta do presente artigo, curvar/apreender sobre o/pelo olhar do outro:
a) a experiência de Melo (2010:69, 71) ao se deparar com seu campo de estudo (apresentado ao pesquisador por seu detentor, Martinho Penõ), diante das possibilidades de interpretação discutidas no caso do machado semilunar Krahô, a kàjré, recuperado(a) do acervo do Museu Paulista;
b) os objetos sagrados no acervo policial do Museu da Polícia Civil constituídos em tentativas de interrupção das práticas afro-brasileiras com base nos códigos penais vigentes à época em casos no Rio de Janeiro, a partir do encontro de Pereira (2017) com Mãe Meninazinha de Oxum, ialorixá do Ilê Omulu Oxum, no bairro de São Matheus, município de São João de Meriti/RJ;
c) o diálogo de Dona Luiza e Neguinha relatado por Amaral (2019) - a fome e o acesso à água contados por uma das loiceiras, mulheres ceramistas da região do agreste do estado de Pernambuco, Brasil, interlocutoras de sua pesquisa e intermediadoras de seu olhar sobre as loiças, potes e panelas em seu estudo;
d) a experiência reflexiva da prática arqueológica de Garcia (2017:130) durante uma caminhada com pessoas Asurini do Xingu em direção às suas aldeias antigas;
e) as arqueografias do Projeto Anhanguera de Arqueologia de Goiás centradas na materialidade do registro arqueológico (Andreatta 1982; Martins, Breda & Pontim 2003; v. Oliveira de & Viana 1999/2000), verticalidades e horizontalidades, temporalidades administrativo-acadêmicas/políticas/público-governamentais, epistemologias anglófonas, lusófonas e francófonas à luz de uma prática arqueológica local;
f) as sinuosidades expressas na percepção do olhar de Vilaça (2018, 2019) para as idas-e-vindas da/o evangelização/cristianismo entre o povo Wari’ e seu pai indígena, Paletó;
e ainda, g) os trabalhos relacionados às políticas públicas das últimas décadas para a inclusão de pessoas indígenas nos meandros acadêmicos - algo que têm potência para a formulação de paradigmas completamente desvinculados de um pensamento ocidental local/tradicional/hegemônico/dominante/ingerente - sendo citadas aqui, o panorama da reflexão intelectual de pesquisadores formados em algumas universidades federais do Brasil Central: Abdzu (2020), Apinagé (2017), Apinajé (2019), Javaé (2019), Juruna (2013), Karajá (2015), C. Krahô (2017), L. Krahô (2016), A. Xerente (2020), E. Xerente (2016), J. Xerente (2020) e V. Xerente (2020).
A vocalização da perspectiva indígena por meio da pesquisa arqueológica (e intermediada por uma agente) é muito bem exemplificada na reinterpretação da estratigrafia arqueológica apresentada em Cabral (2014:98-99) - onde desconfigura-se o contexto tradicional de interpretação dos estratos arqueológicos à luz da realidade Wajãpi vivenciada pela pesquisadora:
.Passados cinco meses, eu reencontro Aikyry em outra oficina na terra indígena. Preocupado, ele me conta que teve dificuldades para explicar para os velhos a estratigrafia. Ele queria explicar para eles como os arqueólogos sabem que aquilo que está no fundo da terra é antigo. No entanto, para os velhos, como ele me ensinou, o antigo não devia estar no fundo, pois “a terra está sempre crescendo”. Para me explicar, ele fez uso da imagem de uma árvore: começa com uma pontinha, um talo, uma folha, e vai crescendo, vai subindo a folha: a parte de cima da árvore é a mais antiga. Assim como a árvore, a terra - ao crescer - leva para cima as coisas mais antigas
Dispõem-se em uma perspectiva de discussão dos elementos tradicionais das ciências humanas e da arqueologia a partir dos contextos específicos dos campos abordados por esta disciplina, numa possibilidade de construção dialógica do conhecimento acadêmico e profissional, com compromisso ético e de acesso à manifestação/posicionamento político de pessoas e grupos/comunidades/povos até então excluídos do discurso/narrativa dominante/persistente.
Pensando sobre as relações corporais e individuais no âmbito da atuação profissional, para a apreensão da experiência e atuação prática, parece interessante a perspectiva de Canclini (2015:346-347, 350), centrada na cultura, história e antropologia, a partir de uma ideia em Merleau-Ponty - a da obliquidade.
Os modelos arqueológicos podem ser revisitados como possibilidade(s) hipotética(s) de construção dos próximos passos/caminhos do pensamento arqueológico, questionados e interpretados no âmbito das culturas locais às quais eles se referem.
Tornam-se espaço para a ampliação da reflexão - permitindo uma discussão mais próxima dos anseios de participação e inclusão das pessoas indígenas, e dos demais grupos excluídos e afastados, em seus processos de construção (e continuidade) e interpretação de suas próprias histórias e narrativas, em paralelo/oposição/transversalidade/ortogonalidade/diametralidade/obliquidade, posições (as)simétricas e questionadoras aos modelos de desenvolvimento nacional, inserindo esses grupos no corpo da discussão maior, permitindo sua atuação política e sua autonomia.
Bem como abre e desata espaços/caminhos para uma reformulação da sociopolítica local considerando os contextos geopolíticos/econômicos inter-regionais.
Direciona ainda a uma perspectiva de transformação: desconsiderando uma história sem-os-indígenas e sem-os-grupos distantes/marginalizados, inserindo-os como sujeitos presentes, próximos e incluídos nas decisões e escolhas, com possibilidade de voz - como proposta de (re)organização política discutida e realizada cotidianamente, e com ampla percepção/discussão sobre o conceito de tempo (e.g. Gnecco & Dias 2017; Gnecco & Rocabado 2010).
Os modelos arqueológicos apresentam um problema e um vigor analítico. Demandam uma reflexão crítica, que potencializa a análise da materialidade da história, da cultura, das pessoas, onde a arqueologia trabalha: permitindo e promovendo a antecipação de novos caminhos para a interpretação e obtenção de dados arqueológicos.
Entretanto, seu caráter ideal deve ser considerado como um problema, quando confrontado por uma realidade historicista - já que é um modelo em si, uma percepção alterada da realidade apresentada pelo arqueólogo, que deve ser entendida como uma representação parcial/inacabada/analítica/preparatória/restrita, a ser identificada/traduzida pela materialidade e temporalidade da dinâmica sociocultural a qual ele remete.
Por fim, cita-se aqui um exemplo de possibilidade de uso de modelos arqueológicos dentro desse panorama reflexivo contemporâneo - caminho indicado em Ensor (2013), Hamberger (2018), Souvatzi (2017) e Tjon Sie Fat (1990) para os estudos de parentesco como estruturas políticas complexas, em direta oposição aos modelos tradicionais adotados pela arqueologia brasileira, para uma tipologia da organização sociopolítica do passado indígena.
Modelos interpretativos hipotéticos, considerando as possibilidades de materialização dos contextos de organização coletiva, representados pelo registro arqueológico de famílias e grupos de famílias em um contexto de uma ocupação humana, uma aldeia - conceitos elementares inicialmente apresentados nos primeiros estudos antropológicos britânicos, retrabalhados para o contexto americano pelo estruturalismo levi-straussiano, e mais recente, problematizados no âmbito do perspectivismo amazônico e seus sistemas específicos de parentesco (Souza & Fausto 2004) - essas representações fornecem subsídios para uma reinterpretação do registro arqueológico brasileiro, a partir dos casos de antigas aldeias arqueológicas e sua distribuição de casas e estruturas associadas, considerando uma perspectiva de organização sociopolítica e socioespacial e de estruturas de poder/autoridade e interação humana.
Algo já explorado no passado no âmbito do trabalho de Wüst (1998), e que hoje se apresenta diante de uma nova materialidade conhecida, estudada.
CONCLUSÕES
A revisão exploratória aqui apresentada perpassou bibliografia pontual (e de partida) centrada nas experiências e práticas do empreendimento da produção de conhecimento científico de paradigmas epistemológicos de profissionais/trabalhadores, arqueólogos e outros, professados no centro-sul brasileiro.
Uma nova produção de conhecimento e prática profissional estabelece-se em consideração reflexiva e historiográfica do passado, e em associação com os contextos/realidades/materialidades de múltiplos outros.
Para além dos modelos (arqueológicos ou não), é preciso considerar uma perspectiva histórica individual da experiência profissional: como construção específica guarnecida/abastecida de um saber-fazer/-pensar/-refletir de uma prática - existe um amplo percurso entre professar ideias relacionadas a paradigmas/espistemologias determinados/as, a agência sobre o corpo do trabalhador/pesquisador e sua atuação/realidade/prática profissional cotidiana, como as representações apresentadas pela perspectiva histórica latino-americana (Gonçalves 2016; Gonzalez 1988; Quijano 2014a/b).
Existe uma perícia/especialização/competência/habilidade/capacidade/distinção que se restringe a cada experiência - sendo então infinitas suas contribuições em contextos/práticas voltadas para o outro/a alteridade.
E, existe um campo contínuo na arqueologia de apreensão da realidade do outro (do passado) a partir de sua materialidade no presente - parece também lógica, uma capacidade arqueológica implícita de reflexão sobre a materialidade da produção do conhecimento arqueológico por meio da experiência/prática de seus pares.
Da América Latina, como local e ponto de partida dessa experiência humana, onde se estabelecem histórias e identidades: cabe “dejar de ser lo que somos” (Quijano 2014b:828), e descobrir quem somos