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Ñawi: arte diseño comunicación

versión On-line ISSN 2588-0934versión impresa ISSN 2528-7966

Ñawi vol.7 no.1 Guayaquil ene./jun. 2023

https://doi.org/10.37785/nw.v7n1.a7 

Artigos originais

Razões para escritas e guerrilhas espaço-temporais em educação

Reasons for writing and space-time guerrilla in education

Luiz Carlos Quirino da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-4715-8932

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. luizcabelo1@hotmail.com


RESUMO:

Neste texto, apresentamos alguns precedentes responsáveis pela emergência do que chamamos de procedimentos de guerrilha escritural. Tais procedimentos têm como principal objetivo a tentativa de produzir rachaduras no tipo de subjetividade engendrada pelos inúmeros dispositivos semióticos capitalísticos que nos demandam adaptação àvelocidade informacional. O efeito mais imediato de tal aceleração contínua é o empobrecimento da experiência e consequentemente a redução das expectativas quanto ao futuro. Este percebido, cada vez mais, como algo catastrófico ou, no limite, impossível. Sobretudo em educação, os procedimentos propostos ambicionam promover experimentações com o espaço, o tempo e um si mesmo articulados em modulações imprevistas.

Palavras chave: Educação; futuro; procedimentos de escrita; subjetividade

ABSTRACT:

In this text, we present some precedents responsible for the emergence of what we call guerrilla scriptural procedures. Such procedures have as their main objective the attempt to produce cracks in the type of subjectivity engendered by the innumerous capitalist semiotic devices that demand our adaptation to the informational speed. The most immediate effect of such continuous acceleration is the impoverishment of experience and, consequently, the reduction of expectations about the future. This future is perceived, more and more, as something catastrophic or, in the limit, impossible. Especially in education, the proposed procedures aim to promote experimentation with space, time, and a self articulated in unforeseen modulations.

Keywords: Education; future; writing procedures; subjectivity

1. Introdução ao cansaço

É cada vez maior o número de estudos, nos mais variados campos do conhecimento, dedicados a alguns pontos problemáticos que sustentam as subjetividades contemporâneas. Uma questão que parece unir boa parte deles é a constatação de que o ritmo imposto pelos dispositivos informacionais, que costuram o tecido social em parcelas cada vez maiores, tem causado transtornos na apreensão das existências individuais e coletivas e, no imite (um limite que está se tornando a norma), produzido sofrimentos psíquicos e físicos de toda ordem. No Brasil, por exemplo, Kehl (2009, 20) faz uma instigante análise da epidemia de depressão que vem se alastrando em regime de contiguidade com a informatização e a virtualização das existências. Ela irá se debruçar principalmente sobre a relação entre a aceleração da vida e seu empobrecimento psíquico: pulamos de uma tela a outra, de uma atividade a outra; no fim da jornada diária, quase nada terá se solidificado em algo que poderíamos chamar, com Benjamim (1994, 115), de uma experiência a ser compartilhada. Muito mais do que uma questão individual, a depressão será abordada por Kehl como um sintoma social que parece contradizer a lógica capitalística calcada na produtividade e no sucesso individual. Em alguma medida, num sentido muito parecido com o da mordaz observação de Fisher (2020, 37) de que o capitalismo é um sistema incongruente, porém, eficaz naquilo a que se propõe, cujo funcionamento está amparado sobre sua própria disfuncionalidade. Contudo a depressão contemporânea e o empobrecimento psíquico - de uma sociedade instalada num peremptório aqui e agora - convertem-se, em muitos casos, em declínio da esperança e na sensação de impotência com relação ao futuro. E esse ponto específico será vital para nossa argumentação.

Uma percepção difusa, porém recorrente, atravessa boa parte do imaginário social e se materializa em inúmeros artefatos culturais - seja na literatura, no cinema ou em outras manifestações imagéticas -, trata-se da impossibilidade de conceber um futuro que não seja expressão da catástrofe que está sendo gestada no presente. Sobre isso Fisher (2018) escreverá: “La lenta cancelación del futuro ha sido acompañada por una deflación de las expectativas. [...] El sentimiento de estar “tarde”, de vivir tras la fiebre del oro, es tan omnipresente como negado” (32-33). Estaríamos vivendo, nas palavras de Franco Berardi (2019a, 7), um iluminismo virado pelo avesso, um “iluminismo obscuro”. Agora, o futuro raramente é percebido como algo em que podemos depositar nossas esperanças, como horizonte de onde dias melhores emergiriam. Um tipo de niilismo parece contaminar a realidade de ponta a ponta. Como se já não houvesse (ou nunca tivesse havido) nenhuma “[...] alternativa à racionalidade algorítmica do mundo das finanças [...] Porque a ferocidade matemática da economia penetrou a linguagem e invadiu todos os aspectos da vida social [...]” (Berardi, 2019a, 9). O futuro, que em gerações anteriores havia sido anunciado como caminho de chegada à terra prometida, já não é possível. O ideal de expansão ilimitada (em todas as direções e dimensões imagináveis), que serviu de combustível à modernidade, parece ter atingido seu ponto de saturação máxima. Já faz algum tempo, “[...] sabemos que os recursos físicos do planeta não são ilimitados e que a produção social precisa ser redefinida” (Berardi, 2020, 66). Porém continuamos produzindo.

Num livro intitulado justamente Futurabilidad, Berardi (2019b) sugerirá que as condições para o futuro já estão sempre em germinação no presente, são imanentes e passam quase despercebidas em meio ao fluxo dos dias vividos de maneira apressada: “Extraer e implementar una de las muchas futurabilidades inmanentes: tal es el paso de lo posible a lo real. La futurabilidad es una capa de posibilidades que pueden evolucionar o no para convertirse en realidades” (13). Ou seja, por mais que isto pareça uma obviedade, é preciso dizê-lo uma vez mais: qualquer ação destinada ao futuro, ou mais precisamente àquilo que ainda não existe, deverá ser executada no aqui e agora vivido cotidianamente. No entanto o porvir, apesar de suas condições inscritas no presente, não é algo transparente e de contornos precisos (Han, 2018, 37). Então almejar outras formas de subjetividade, menos submetidas e adoecidas pela velocidade que excede o que conseguimos metabolizar, passa pela invenção de modos heterogêneos e/ ou divergentes de experienciação do tempo e do espaço presentes. Ou agimos no presente para poder imaginar um futuro outro, ou, como ao que nos conduzem as forças capitalísticas, continuaremos bloqueando a imaginação esperançosa do futuro, imobilizando assim o próprio presente. O tempo dá cambalhotas sobre si mesmo. Pois mesmo a ficção cientifica, como propõe Fredric Jameson, “[...] não tenta seriamente imaginar o futuro ‘real’ do nosso sistema social: antes, seus múltiplos futuros simulados servem à função bem diferente de transformar nosso presente no passado de algo por vir” (2021, 447).

Intuímos que a escola, a universidade e outros ambientes educacionais talvez sejam enclaves privilegiados nesse sentido. Porém, para que essa percepção possa adquirir alguma materialidade, é preciso que elaboremos formas - cada um a sua maneira e dentro das possibilidades contidas nos materiais e meios a sua disposição - através das quais essas linhas, meramente potenciais, consigam alcançar alguma atualização. Berardi (2019b) nos mostra a necessidade de estar atento para que possamos captar tais energias inerciais implicadas nessa experimentação cujo resultado apresenta-se como linhas de fuga ou resistência a um dado estado de coisas: “El futuro se inscribe en el presente bajo la forma de una tendencia que podemos imaginar: una suerte de premonición, un movimiento vibratorio de partículas guiadas por un proceso incierto de recombinación constante” (Berardi, 2019b, 24). É preciso salientar que, ao contrário do que possa parecer, não se trata, de maneira alguma, de um projeto abstrato, visando a finalidades transcendentes. Pois como pudemos ver - com Berardi e Jameson, por exemplo - o futuro é uma temporalidade que se dobra e age sobre o presente para interromper ou desencadear sua inércia. O movimento contrário também é viável e é nele que apostamos: em certa experimentação no presente a partir das subjetividades capitalísticas contemporâneas e de outras temporalidades e velocidades.

2. Além da linguagem, aquém do mundo

A urgência de se pensar alternativas às formas de escrita acadêmicas mais tradicionais ou canônicas não parte de uma demanda (ou, no limite, de uma extravagância) de ordem meramente estética. Ao sugerirmos isso, não pretendemos subestimar a importância da possibilidade de fruição textual, pois ela é imprescindível. O que tentaremos defender, aqui, entretanto, é a função estratégica da estética, visando à superação de seus próprios limites, rumo a uma escrita acadêmica que mobilize o espaço, o tempo e a própria vida. E se reiteramos nosso investimento na forma (ou na estética), trata-se de uma mobilização que é igualmente tentativa de introduzir alguma vitalidade na escrita acadêmica - alguma saúde, algo como certa medicina do tipo literária, que se irradia para o mundo, defendida por Deleuze (2011a, 14).

Partimos do entendimento de que nossa subjetividade e, junto com ela, determinadas disposições individuais e coletivas, ante a realidade, são constituídas e delimitadas, em grande medida, pela linguagem. Algo num sentido muito próximo da clássica (e um tanto vulgarizada) proposição 5.6, que pode ser lida no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein (2001, 245): “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”. Porém não apenas limitados por ela exploramos o mundo, ou não apenas por um tipo de linguagem que poderíamos chamar de significante.

Nossa compreensão da maneira como tal linguagem engendra as subjetividades - principalmente num cenário global dominado pelo que Guattari (1985, 211) chamou de “capitalismo mundial integrado” - baseia-se, em grande medida, na leitura, inventiva e ao mesmo tempo bastante didática, que Lazzarato (2014) faz do autor de Caosmose (2012). Na visão do pensador italiano, algumas correntes filosóficas (e de outras ciências humanas) estariam cometendo um significativo equívoco ao apontarem a linguagem, mais especificamente em sua expressão significante, como principal fonte de constituição de um si mesmo e de investimento por parte das energias capitalísticas que movimentam as engrenagens dos poderes econômicos, políticos e sociais.

Ao nos referirmos às subjetividades localizadas espaço-temporalmente sob o sistema informacional e econômico dominante na contemporaneidade, daremos preferência ao termo capitalística (ou capitalístico), em detrimento de capitalista, num intuito de ressaltar a emprego feito por Guattari (2012, 34), para quem a “subjetividade capitalística” é aquela que é engendrada num contexto da equivalência generalizada, representada pelo capital e suas tecnologias informacionais em plena consolidação da expansão global.

2.1 Sujeição social e servidão maquínica

Para entendermos a função da produção de subjetividades num contexto capitalístico global, talvez fosse importante que tivéssemos alguma clareza quanto à posição estratégica das mesmas para o funcionamento do sistema como um todo. Lazzarato (2014, 14) dirá que os “modelos subjetivos” elaborados pelo capitalismo fazem parte de uma cadeia de produção e consumo, na qual estão inseridos os artigos mais corriqueiros como os eletrodomésticos, os carros ou os brinquedos. Gostaríamos de sublinhar, com isso, a interpenetração (o investimento sobre e a difícil distinção) entre um si mesmo, a economia, a política e, cada vez mais, os fluxos informacionais - “[...] de tal maneira que a economia política se mostre idêntica à ‘economia subjetiva’” (Lazzarato, 2014, 14). Ou pelo menos fazendo parte de um conjunto muito bem concatenado de ações.

Um dos traços mais perceptíveis dessa contaminação da subjetividade pelos caracteres definidores da economia capitalística contemporânea é a assimilação, por uma parcela considerável dos indivíduos, da ideia de que as existências individuais deveriam ser geridas de forma muito parecida com a de uma empresa, por exemplo. Desse modo, os sujeitos são levados a acreditar (e a colocar em prática de fato) num empreendedorismo de si mesmo. Entretanto todo esse investimento na própria biografia, na gestão da vida equivalente a uma carreira ou a um empreendimento empresarial, carrega consigo inúmeros efeitos colaterais; o principal talvez seja “[...] o empobrecimento da existência trazido pelo ‘sucesso’ individual do modelo empreendedor” (Lazzarato, 2014, 14). Pois os sujeitos encontram-se isolados numa espécie de guerra particular de todos contra todos.

A subjetividade, nos termos acima apresentados, converte-se em produto e ao mesmo tempo em engrenagem da máquina capitalística em sua expansão generalizada - no limite, como estamos podendo observar, de maneira dramática na atualidade, até a extinção dos recursos naturais que possibilitam a vida dos humanos. A máquina capitalística manufatura mercadorias materiais e imateriais, coloniza o tempo e o espaço, entulha o planeta de quinquilharias, sobrecarrega os corpos de cansaço e os espíritos de aflição; porém o que tem ficado para trás, como efeito mais duradouro, é a desertificação da realidade.

Fazendo uso de certo léxico deleuzo-guattariano, podemos dizer que as subjetividades sobre a quais estamos nos debruçando são o resultado da articulação que ocorre, num intervalo, num espaço pouco definido, mas que concentraria seu espectro de atuação mais ou menos entre aquilo que poderíamos chamar de “máquinas técnicas” e “máquinas sociais” (Lazzarato, 2014, 17). Espaço intervalar onde operam os dispositivos que “[...] Deleuze e Guattari denominam de dispositivos de sujeição social [assujettissement sociaux] e servidão maquínica [asservissements machiniques]” (Lazzarato, 2014, 17). Máquinas e dispositivos que concatenam elementos humanos, não humanos (e desumanos), materiais, temporais e informacionais visando à ampliação da produção até alcançar a própria subjetividade. Trata-se de dois mecanismos (dispositivos) de poder privilegiados operando em meio a muitos outros.

Assim sendo, vejamos um pouco mais de perto os dispositivos de efetivação da sujeição social. Poderíamos começar dizendo que a sujeição social é responsável pelo assujeitamento num nível individual. Por meio dela nos são atribuídos os diferentes papéis e, de alguma maneira, a posição que deveremos ocupar no tecido social - como se fôssemos dispostos num mapa aberto sobre um tabuleiro. Assim, serão prescritos (em alguns casos com certa violência concreta ou simbólica) nossa nacionalidade, sexo, profissão etc. Principalmente num espaço social cuja demarcação se dá, dentre outras coisas, por uma divisão do trabalho, mesmo para os sem trabalho - uma vez que ninguém consegue escapar de seus efeitos de inscrição. Sobre tal captura, Lazzarato (2014, 27) dirá: “Através da linguagem, ela constitui uma armadilha semiótica significante e representativa [...] produz um ‘sujeito individuado’ cuja forma paradigmática no neoliberalismo tem sido a do ‘capital humano’ e do ‘empresário de si’”. É bem provável que, num meio social no qual as raízes de um individualismo feroz vêm ganhando terreno, ela tenha encontrado o terreno propício a seu franco desenvolvimento. Estamos diante de uma curiosa metamorfose do humanismo de filiação iluminista, já que se podemos ainda imaginar algo parecido com um desenvolvimento humano, ele ganha as feições (muito pouco humanistas) de um capital humano. A consequência mais direta de um empreendedor de si, convertido em capital humano, é a autoexploração. Ou seja, no estágio atual do capitalismo neoliberal - ou do capitalismo mundial integrado -, convertemo-nos em agentes/gestores de nossa própria sujeição.

A sujeição social, no entanto (e aqui talvez resida sua eficácia pouco detectável e difusão), não é a operadora privilegiada dessa produção da subjetividade capitalística. Junto com ela, em um registro diverso, em alguma medida até mesmo oposto, porém complementar, atuam as forças de servidão maquínica; “[...] se dá através da dessubjetivação ao mobilizar semióticas, não representacionais ou linguajeiras, mas funcionais e operacionais (a-significantes e não representativas)” (Lazzarato, 2014, 28). Aqui já não estamos num domínio individual ou pessoal. Os dispositivos de servidão maquínica operarão certa dimensão dessubjetivadora necessária ao complexo da subjetivação capitalística. Por mais que isso pareça contraditório, estamos numa nebulosa zona de implicação de dois movimentos antagônicos, porém complementares, daí seu enredamento. Se a servidão social engendra indivíduos, a servidão maquínica irá mobilizar suas energias para a fabricação de seres dividuais. Porquanto os sujeitos dividuais serão considerados como peças ou engrenagens dos agenciamentos (ou maquinários) materiais, informacionais e sociais. Como explica Lazzarato (2014, 28), o termo servidão é tomado emprestado das teorias da informação, por Deleuze e Guattari, e diz respeito ao comando dos elementos (seguimentos, ou peças) de determinado sistema. “A servidão é o modo de controle ou de regulação (‘governo’) de uma máquina social ou técnica, como uma fábrica, uma empresa ou um sistema de comunicações” (Lazzarato, 2014, 28). Sob o regime infligido pela servidão, os divíduos estão num patamar muito parecido com o dos outros elementos (não humanos, digamos assim), que trabalham em conjunto no funcionamento de determinadas “[...] máquinas técnicas, como procedimentos organizacionais, semióticas [...]” (Lazzarato, 2014, 28). Enquanto na servidão social a diferenciação entre sujeito e objeto ainda pode ser observada, na servidão maquínica, pelo contrário, os dualismos são desmontados, os sujeitos dividuais trabalham em conjunto com as máquinas e maquinismos diversos: “[...] são meras partes recorrentes e intercambiáveis de um processo de produção, comunicação, consumo etc. que os excede” (Lazzarato, 2014, 29).

2.2 Semiologias significantes e semióticas a-significantes

A administração dos fluxos semióticos heterogêneos que cortam o planeta, num sistema econômico capitalístico, mundial e integrado, é feita pelos próprios poderes sintetizados na forma capital. A subjetividade, nesse regime de equivalência generalizada, é apenas mais um elemento na torrente onde “[...] os fluxos de signos são condições de ‘produção’ tanto quanto os fluxos de trabalho e de moeda” (Lazzarato, 2014, 39). Estamos submetidos - em alguma medida voluntariamente, mesmo que não tenhamos consciência disso - a um tipo de controle muito parecido com aquele teorizado por Deleuze (2013, 226): gestão que se dá sobretudo semioticamente, pois é “[...] feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou à rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornam-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornam-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’”.

Ao capital caberia, nos termos acima esboçados, o controle, a gestão do escoamento informacional, por isso semiótico, dos elementos humanos e não humanos, que ingressam na operação constitutiva de sua própria expansão. Lazzarato (2014, 39) dirá que, apesar de se tratar de dois regimes de signos, a sujeição social e a servidão maquínica mobilizam diferentes forças sígnicas e, por isso, serão abordadas de duas maneiras diferentes:

A sujeição social mobiliza semióticas significantes, em particular a linguagem que, destinada à consciência, mobiliza representações com vistas a construir um sujeito individuado (“capital humano”). A servidão maquínica, por sua vez, funciona baseada nas semióticas a-significantes (índices do mercado de ações, moeda, equações matemáticas, diagramas, linguagens de computador, contas nacionais e de corporações etc.) que não envolvem a consciência e as representações e não têm o sujeito como referente (Lazzarato, 2014, 39).

Por um lado, as semióticas a-significantes conferem desterritorialização aos materiais que concatenam, unindo elementos heteróclitos (um código, uma leitura ou abordagem de uma máquina alheia aos sujeitos); por outro, as semiologias significantes trabalharão numa direção inversa, porém complementar: controlarão o coeficiente de desterritorialização e o conduzirão de forma relativamente segura. A servidão maquínica será responsável pelo acionamento ou interrupção das operações centradas em efeitos de input e output e na indiferenciação entre as inúmeras maquinarias, sejam elas tecnológicas, informacionais ou sociais. A sujeição social, por sua vez, por ser encarregada da produção de sentidos, através de uma linguagem significante, é responsável pelos limites da desterritorialização. Trata-se de duas operações de natureza distinta, porém coordenada (Lazzarato, 2014, 39).

Lazzarato dirá que o poder, utilizado pelo capital e articulado pela semióticas a-significantes, reside em sua capacidade de conferir equivalência, ainda que muito frágil, aos diferentes elementos que reúne sob sua esfera de atuação. Trabalho feito através de operações lógicas e com muito pouca interferência humana (Lazzarato, 2014, 41), transportando consigo feições impessoais, às quais se poderia atribuir um caráter supostamente imparcial. Juntamente com elas, aqueles que detêm os poderes de decisão (seja no âmbito político ou econômico) recorrerão às semiologias significantes, em seus variados ramos de atuação, para legitimar suas ações e manter alguma coesão. As semióticas a-significantes transmitem uma ideia de impessoalidade e cientificidade enquanto as semiologias significantes maquinam a linguagem para, em muitos casos, justificar o injustificável: como a ideia, bastante disseminada, de que “não há alternativa” (Lazzarato, 2014, 41), por exemplo.

Se realizamos um isolamento das semióticas a-significantes e das semiologias significantes, tal divisão possui fins meramente didáticos, pois, segundo a leitura que Lazzarato faz de Guattari, elas operam de maneira conjunta. Na realidade, seria mais adequado chamarmos tal conjunto de semióticas mistas (Lazzarato, 2014, 41). Entretanto o objetivo, proposto por Guattari em sua teoria semiótica, é o dar ênfase às semióticas não humanas. A linguagem significante, num contexto capitalístico, seria apenas mais uma engrenagem de uma máquina semiótica muito mais ampla.

2.3 A função existencial

Guattari, contudo, pensou meios de ruptura da armadilha semiótica, constituída pelo entrelaçamento da sujeição social e da servidão maquínica. Para ele, se existe a possibilidade de algum gesto, por ínfimo que seja, de autonomia subjetiva, ele se dará nos meandros do linguístico e do extralinguístico (Lazzarato, 2014, 172), como algo que os atravessa e excede. Essa dimensão, que é extralinguística, porém, não poderia ser reduzida nem à intersubjetividade nem aos inúmeros maquinismos sociais. Guattari dirá, ainda, que as transformações subjetivas não possuem o discurso como ponto de apoio principal, apesar das incontornáveis forças discursivas no âmago das subjetividades. À inscrição realizada por essas forças e os caminhos por elas abertos - que se somam às das linguagens, ultrapassando-as - ele chamará de “função existencial” (Lazzarato, 2014): “[...] uma apreensão e uma apropriação existencial de si e do mundo, e é a partir dessa apropriação existencial/afetiva que a linguagem, o discurso, o saber, a narrativa, a obra e assim por diante podem existir” (175).

Sugerimos, mais acima, que as semióticas a-significantes e as semiologias significantes trabalham em conjunto, apesar de as termos analisado separadamente com finalidades didáticas. A elas, entretanto - visando a um entendimento mais abrangente da produção das subjetividades capitalísticas, bem como das alternativas de ruptura -, acrescentaremos, a partir de agora, a dimensão existencial. Trata-se de um intrincado maquinismo semiótico que opera em conjunto com as semióticas e semiologias, podendo tanto engendrar objetos discursivos quanto modelos existenciais (prováveis trajetórias a serem adotadas etc.). A principal diferença, aqui, é a de que uma existência, um percurso possível de si, conforme a teorização guattariana, é algo “[...] da ordem do autoposicionamento, da autoafetação” (Lazzarato, 2014, 176). A linguagem significante entra em jogo, mas na forma do que o autor francês designou como “ritornelos existenciais” (Guattari, 2012, 27), principalmente em seus desdobramentos artísticos/expressivos, mas não somente neles, é preciso dizê-lo: [...] os fluxos semióticos existem em coordenadas espaço-temporais atualizadas, enquanto que a ‘relação consigo mesmo’, os ‘territórios existenciais’ e os ‘universos de valor’ constituem a dimensão incorporal, afetiva e intensiva do agenciamento [...] (Lazzarato, 2014, 177).

Essa dimensão existencial - que é atravessada, mas que principalmente atravessa os elementos semióticos e semiológicos - é também chamada por Guattari (reforçada por Lazzarato) de “máquina autopoiética” (Lazzarato, 2014, 177). Se, por um lado, as semióticas e semiologias trabalham em prol da construção de um sentido; por outro, os cortes existenciais ou autopoiéticos configurarão espaços onde se possa existir - as circunscrições de um si mesmo.

Lazzarato (2014, 177-178) diferencia os princípios de funcionamento das semiologias/semióticas e dos cortes existenciais da seguinte forma: As semiologias/semióticas são referenciadas externamente, ou seja, encadeiam linguagens e formam discursos; a dimensão existencial é autorreferente, produzindo a si mesma. As semiologias/semióticas operam linearmente seguindo uma direção homóloga à da linha temporal como convencionalmente a concebemos; a abordagem existencial segue um trajeto circular, retornando sobre si mesma e consolidando determinado modo de existir, ainda que diferencial. E, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, a repetição semiológica/semiótica produz um acréscimo de linguagem enquanto a repetição existencial, que Guattari chamou de ritornelo, produz deslocamentos de si e da subjetividade (um ser si mesmo afirmado em sua diferencialidade). Por fim, as unidades semióticas e discursivas agem sobre as representações e extensivamente; os cortes existenciais, por sua vez, são atravessados por afetos variados e intensivos.

Essa operação, essencialmente pragmática, voltada para a existência, é avessa ao reducionismo a uma dimensão puramente discursiva, já que: “[...] os operadores não são sujeitos e objetos, mas [...] entidades mutantes, metade objetos, metade sujeitos, que não têm exterior nem interior, mas que engendram interioridade e exterioridade” (Lazzarato, 2014, 177). Enquanto as semiologias/semióticas agenciam elementos heterogêneos e alternância, a existência implica certa continuidade, mesmo dentro de um sistema mutante. Uma existência é (pode sê-lo), mesmo na relação consigo mesma, a totalidade do existente.

2.4 Ritornelos existenciais e autopoiese

A dimensão que nos interessa, aqui, é aquela que constitui certos enclaves, ainda que móveis, de não discursividade essenciais à formação das subjetividades, principalmente daquelas engendradas num contexto capitalístico: quase como forças puras que agenciam as semióticas e semiologias que atravessam e arrastam consigo. Esse reduto-circulante não discursivo assim entrevisto “[...] é percorrido por dinâmicas semióticas e expressivas muito ricas, [...] por ‘sis emergentes’, por focos de subjetivação mutantes e de protoenunciação, humanos e não humanos, que constituem máquinas autoprodutoras de existência” (Lazzarato, 2014, 180).

Porém, constatada a irredutibilidade das semióticas/semiologias e da dimensão existencial, será preciso um tipo de abordagem sui generis caso desejemos operar nos interstícios de tais elementos. Essa abordagem foi igualmente pensada por Guattari (2012, 113) e chamada de “paradigma estético”. Como já vimos, essa dimensão não discursiva e existencial, apesar de habitar os meandros das semióticas/ semiologias, é eminentemente autorreferenciada. Por isso, ou apesar disso, ao realizar aberturas de possibilidades de produção de um si, não o faz sem efetuar igualmente um corte transversal e reagrupar em outros termos essas mesmas semióticas/semiologias. Porquanto não possui exterioridade e necessita de um ponto de sustentação a ela exterior: e isso ocorre ao realizar incisões e abrir passagens entre os elementos em que se ampara - maquínicos e discursivos. Aqui, entretanto, reside seu poder de redefinição do possível e do impossível subjetivos.

Ao fazer referência a intervenções de natureza estética, Guattari não está sugerindo necessariamente a efetivação de objetos artísticos - apesar de ressaltar a importância da arte e seus procedimentos -, mas uma “[...] pragmática da relação entre discursivo e existencial, entre virtual e atual, entre possível e real [...]” (Lazzarato, 2014, 180). O existencial, para o pensador francês, seria, de certa forma, da ordem do maquínico, mas de um maquinismo que não se confundiria com o mecanicismo. O maquinismo consistiria em certo desvio do antropomorfismo e da representação, mesmo que os sujeitos sejam incontornavelmente os responsáveis pelos movimentos existencializantes. Trata-se muito mais de um agenciamento, sempre múltiplo, porém centrado em forças existenciais, visando a modos heterogêneos de subjetivação.

Central à argumentação que estamos tentando erigir é o conceito concatenado e concatenante dos movimentos existenciais acima descritos, designado por Guattari como “ritornelo existencial”; ou como ele explica: “Os diferentes componentes mantém sua heterogeneidade, mas são entretanto captados por um ritornelo, que ganha o território existencial do eu” (Guattari, 2012, 28). O ritornelo existencial é a implicação dos sujeitos, ainda que não antropomorficamente, numa linha de cruzamento espaço-temporal das virtualidades de um si desconhecido e imprevisível - “[...] cruzamento de modos heterogêneos de subjetivação [...]” (Guattari, 2012, 27). Principalmente no que diz respeito à dimensão temporal, que é a que mais nos importa aqui, para o traçado ritornélico não existe universalidade temporal, pois ela será sempre uma arregimentação particularíssima de elementos espaço-temporais heterogêneos, implicados mutuamente.

Outra consequência dos ritornelos existencializantes é o bloqueio de uma experiência temporal passiva. Entretanto a impossibilidade de ingresso na dimensão temporal de forma passiva exigirá maneiras de recompor os elementos dos universos de subjetivação sob outras configurações. Guattari (2012, 28) sugerirá um movimento muito parecido com o da poesia: poético e existencial simultaneamente, que chamaremos de autopoiético, e que operará da seguinte forma:

1) enquanto ruptura molecular, imperceptível bifurcação, suscetível de desestabilizar a trama das redundâncias dominantes, a organização do ‘já classificado’ ou, se preferirmos, a ordem do clássico; e 2) enquanto seleção de alguns segmentos dessas mesmas cadeias de redundância, para conferir-lhes essa função existencial assignificante (sic) que acabo de evocar, para ‘ritornelizá-las’, para fazer delas fragmentos virulentos de enunciação parcial trabalhando como shifter de subjetivação (Guattari, 2012, 31).

Tendo apresentado alguns dos principais elementos envolvidos no processo de subjetivação capitalística, tal como os percebemos a partir de nosso encontro com a leitura que Lazzarato faz de Guattari, talvez possamos passar às possibilidades abertas por tal perspectiva.

2.5 Experimentação escritural-guerrilheira

Em um texto provocativo, intitulado Teoria da guerrilha artística, Décio Pignatari (2004) estabelecerá algumas correspondências entre a guerrilha e os movimentos realizados pelas vanguardas artísticas. A principal característica da guerrilha talvez possa ser resumida da seguinte forma: “Em relação à guerra clássica, linear, a guerrilha é uma estrutura móvel operando dentro de uma estrutura rígida, hierarquizada” (Pignatari, 2004, 168). Nela as estratégias de ataque e de recuo vão sendo elaboradas conforme a guerra, dentro da qual ele se move, se desenrola. A vanguarda, por sua vez, volta-se continuamente contra um dado estado de coisas que, por motivos diversos, já não a representa ou imobiliza seus movimentos, dos quais é inseparável.

O tipo de escrita que estamos sugerindo, bem como os exercícios e procedimentos a ela ligados, poderia ser entendida como um tipo de guerrilha, por causa de seus objetivos eminentemente políticos/ anticapitalísticos; mas poderia ser relacionada igualmente às vanguardas artísticas, dado sua dimensão poética/poiética de desarticulação e rearticulação de certa sintaxe (e com isso a semântica) da realidade, mas principalmente dos sujeitos envolvidos. Entendemos a escrita como algo que não pode ser separado do mundo. Dito de outra forma, acreditamos que a escrita e os exercícios que proporemos projetam-se em direção à resistência (mesmo física) do mundo e de um si mesmo supostamente unívoco.

Se a principal patologia que se abate sobre os indivíduos contemporâneos tem como causa a aceleração do tempo a tal ponto que os humanos já não conseguem acompanhar, então a guerrilha escritural deverá dinamitar algumas bases -mesmo que mínimas, aquelas a seu alcance- de sustentação e responsáveis pela assimilação, por parte dos sujeitos, desta temporalidade capitalística. Os movimentos/ procedimentos de guerrilha avançarão e recuarão sobre o mundo ou uma localidade específica, mas principalmente sobre os próprios sujeitos. Porquanto Pignatari (2004, 170) sugere que:

Vanguarda já não pode ser considerada como vanguarda de um sistema preexistente, de que ela seria ponta-de-lança ou cabeça-de-ponte. Ao contrário, hoje ela se volta contra o sistema: - é antiartística. Vale dizer, configura-se como metavanguarda na medida em que toma consciência de si mesma como processo experimental. Metavanguarda não é senão outro nome para vanguarda permanente.

Acreditamos que as formulações de Pignatari resumem muito bem determinada ética envolvida na ignição das forças inerciais contidas, produzidas e reproduzidas nos exercícios a respeito dos quais estamos tentando esboçar alguns princípios gerais de funcionamento. Exercícios metavanguardistas e metaguerrilheiros que implicam numa experimentação reiterada com aquilo que se pode fazer em educação, que exploram os limites de sua jurisdição. Se Spinoza (2017, 167) questiona-se, em sua Ética, a respeito do que pode um corpo (mesmo ele), suspeitamos igualmente, de nossa parte, de que não se pode saber antecipadamente o que alcança uma escrita, uma aula, ou uma subjetividade e suas corporalidades, espacialidades, mas principalmente suas temporalidades. Seguiremos em um sentido muito parecido com o que Viveiros de Castro descreve/localiza o modo como alguns povos indígenas exploram e estabelecem (movelmente) os limites de sua ontologia e (através) de suas práticas. Nas palavras do próprio antropólogo: “Não há registro civil, e, a1ém disso, a ontologia indígena é essencialmente jurisprudencial, não um código normativo” (Viveiros de Castro, 2015, 46). Este texto tampouco pretende propor qualquer código normativo para e experimentação escritural-guerrilheira sobre a qual discorre. No máximo, espera conseguir conjecturar de maneira mais ou menos convincente a respeito de algumas possíveis entradas e saídas, ataques e recuos. Não se trata, todavia, de um impulso de destruição generalizada. Não defendemos a delinquência. Pois como nos lembra Marighella (2003, 4), em seu Manual do guerrilheiro urbano: “O guerrilheiro urbano, no entanto, difere radicalmente dos delinquentes. [...] O guerrilheiro urbano segue uma meta política [...]”. Nossa meta é acima de tudo política. Nosso alvo, apesar de difuso, pode ser delimitado com algum rigor: trata-se da subjetividade engendrada pelas forças capitalísticas, subjetividade que se racha e desmorona como uma casa alicerçada sobre a areia: a areia do tempo acelerado na era da informação. Em outro texto, afirmamos tomar a escola como o lugar (um lugar entre os muitos outros lugares e elementos) onde existe a possibilidade de se por em gestação uma espécie de “real potencial” (Silva & Adó, 2021, 2014), daí seu caráter incontornavelmente político; agora, visamos às desventuras do si mesmo (da subjetividade) em meio às forças desse mesmo real, sempre político.

2.6 O tempo no espaço

Não deixa de ser curioso o fato de que num tempo como o nosso, de aceleração e vertigem, a depressão se alastre como uma erva daninha que - num movimento ambíguo - pode pôr a perder o jardim das delícias capitalísticas e todo o seu paisagismo. Logo a depressão que é caracterizada, por Kehl, como uma espécie de suspensão do tempo, um índice ou sintoma de que algo não vai bem na realidade tal como a estamos construindo:

A depressão é a expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI (Kehl, 2009, 22).

Entretanto não visamos a um tipo de clínica da depressão ou algo que o valha. O que temos como alvo é a temporalidade em si mesma. Esta que, em sua ligeireza, é apontada como a causa de boa parte dos males psíquicos que se abatem sobre os sujeitos contemporâneos. Por isso, talvez fosse interessante, de nossa parte, mais alguns esclarecimentos sobre a natureza do tempo a que nos referimos.

A temporalidade que nos interessa é aquela vivida pelos humanos e que, como Bergson teorizou, difere daquela da mecânica, pois não se submete tão docilmente à mensuração: a duração, ou o tempo que dura, em oposição à teoria da relatividade einsteiniana, a dimensão temporal reconciliada com o que a vida tem de mais propriamente humano e inefável (Barreto & Ferreira, 2009, 205). Nas palavras de Deleuze (1999), a duração, encarada como uma experiência psicológica, é portadora da própria possibilidade de mudança contínua, é a mudança em si mesma: “[...] trata-se de uma ‘passagem’, de uma ‘mudança’, de um devir, mas de um devir que dura, de uma mudança que é a própria substância” (27). E é sobre essa camada de tempo, numa tentativa de despi-la de sua duração, a propriedade apreendida pelos humanos, que as forças capitalísticas investem, já que “[...] não existe uma medida objetiva para a duração: esta depende de condições que afetam a subjetividade” (Kehl, 2009, 139-140). Bergson (1999) dirá que a duração não pode ser afixada num ponto determinado do presente, ou em seus múltiplos instantes: “Evidentemente está aquém e além ao mesmo tempo, e o que chamo ‘meu presente’ estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro” (161). Porém, segundo ele, é sempre em direção ao futuro que o presente da duração aponta. Do passado não guardamos muito mais que sensações; quanto ao futuro, pelo menos aquele mais imediato, apreendemos apenas seu movimento. Por isso o presente é experimentado como uma mistura de sensações do que passou e do movimento adiante. E como passado, presente e futuro, para Bergson, são indissociáveis, o presente será designado como sendo “sensório-motor” (1999, 162).

Nosso corpo, via de passagem para nossa percepção e que se reveste de certa subjetividade, é também ponto de convergência do espaço e do tempo. Em nosso corpo, por meio da percepção e da inteligência assimilamos os estímulos exteriores e o transformamos em ideias ou movimentos, ou nos dois concomitantemente - no “[...] estado atual de meu devir, daquilo que, em minha duração, está em vias de formação” (Bergson, 1999, 162).

E nenhum regime temporal pode ser mais humano do que a duração, ou seja, essa temporalidade que só pode ser apreendida por meio do que nos afeta e do que afetamos. “Na profundidade, não somos mais ‘seres’, mas sim vibrações, efeitos de ressonância, ‘tonalidades’ de diferentes frequências. E o próprio universo acaba se desmaterializando para se tornar duração [...]”, dirá Lapoujade (2017, 11) ao comentar a obra bergsoniana. Conforme a leitura muito particular que ele faz de Bergson, a duração é “[...] o que nos torna efetivamente livres [...]” (Lapoujade, 2017, 18). Porquanto apenas imersos nela experimentaríamos a heterogeneidade dos afetos espaço-temporais que compõem uma existência; por outro lado, o impedimento, voluntário ou involuntário, da fruição do tempo que dura equivaleria à perda de nossa liberdade. E não estamos todos submetidos à aceleração, à “infoacelereação” do “semiocapital” (Berardi, 2020, 76) contemporâneo? É ainda apenas por meio da duração que lograríamos entrar em contato com nosso “eu de profundidade” onde, através de certa emoção vibracional do encontro, experimentaríamos com mais intensidade os afetos (Lapoujade, 2017, 18).

Temos a impressão de que, ao investirem sua energia na aceleração do tempo, as forças do semiocapital -ou seja, as forças capitalísticas da era da informação- acabam corroendo gradualmente as condições que tornam possível a apreensão do tempo que dura, tempo da experiência, tempo propriamente humano. Berardi dirá que vivemos numa época de “semioinflação”, pois “[...] há semioinflação quando você precisa de mais signos, palavras e informação para comprar menos sentido” (Berardi, 2020, 76). E estamos soterrados. O capital, na era da informação, visando à ampliação da produtividade, necessita, como acontece desde o início da era industrial, diminuir o tempo gasto na realização de tarefas. Por isso pulamos de uma tarefa à outra, de uma tela à outra. Mesmo quando realizamos uma pesquisa na internet ou perdemos tempo nas redes sociais, o tempo está sendo apenas ilusoriamente perdido, pois estamos gerando mais-valia. Essa tentativa de colonização da direção tomada por nossos olhos, de nossa atenção, produz, no entanto, além do lucro almejado pelo semiocapital, efeitos colaterais. Pois como Berardi (2020, 76) sugere: “A atenção não pode ser acelerada de maneira ilimitada”. Assim como os outros recursos naturais, nossa atenção está sendo exaurida pela produtividade capitalística, e, com ela, qualquer perspectiva de duração. Cada segundo é preenchido por atividades (de trabalho ou de lazer, pouco importa). “Parece que nada falta aos que se precipitam na velocidade exigida por essa demanda. Nada falta a não ser - tempo. O tecido da vida” (Kehl, 2009, 188).

A questão das subjetividades demandadas/produzidas pelo capitalismo, na era da informação, tal como estamos problematizando, parece envolver então, além das semiologias significantes e das semióticas a-significantes (apresentadas alguns parágrafos acima), o próprio espaço-tempo e seus limites de expansão. Limites impostos pelas características dos humanos envolvidos no processo, cujo desrespeito de suas dimensões existências causa sofrimentos das mais diversas ordens. E se o futuro depende sempre de condições imanentes em gestação no presente, não nos espanta a sensação de catástrofe iminente e a falta de esperança. O que podemos fazer -enquanto educadores, como gesto mínimo, destinado a um mundo que ainda não existe, mas que gostaríamos que não estivesse pré- determinado por forças alheias a nós- é tentar inventar meios de contraposição a tudo que bloqueia o futuro. Ou seja, ao que nos impossibilita de vivenciar o tempo presente como algo minimamente livre.

3. Conclusões parciais, procedimentos de guerrilha and back to the future

Deleuze aponta em Bergson uma característica que será bastante importante para os exercícios tal como os iremos propor. Ele dirá que, para o autor de Matéria e Memória, espaço e tempo mudam de maneiras dessemelhantes. Enquanto o espaço e a matéria sofrem e impõem transformações de grau, o tempo-duração conferirá mudanças que se refletirão sobre sua própria natureza - “[...] de uma parte, o lado espaço, pelo qual a coisa só pode diferir em grau das coisas e de si mesma (aumento, diminuição); de outra parte, o lado duração, pelo qual a coisa difere por natureza de todas as outras e de si mesma (alteração)” (Deleuze, 1999, 22). Dito de outra maneira, a duração é aquilo que não pode mudar sem que experimente uma mudança em sua própria natureza. Por isso, colocar-se no tempo que dura é colocar-se na pura virtualidade.

Dessa forma, produzir exercícios que nos façam mergulhar (ou pelo menos molhar os dedos) na virtualidade e no devir passa por proporcionar os meios para sabotagens, ainda que muito pequenas, na aceleração do tempo experimentada hoje em quase todos os lugares. Passa por exercícios que consigam converter frações, mesmo que infinitesimais, de tempo-produtivo-capitalístico em tempo-duração-vital. O objetivo central dessa experimentação seria o de transformar o espaço-matéria em duração-espírito por meio da contração da matéria. Daí a importância das semiologias significantes, das semióticas a-significantes e da dimensão existencial a serem mobilizadas pelos exercícios. Provavelmente por esses motivos, Bergson (1999) dirá que “[...] as questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser colocadas mais em função do tempo do que do espaço” (75).

Em educação -seja formal ou informal, seja na escola ou na universidade, contra as forças do capitalismo mundial integrado, que exaurem porções cada vez mais vastas de nossa experiência- acreditamos que nossa escrita deveria ser uma espécie de guerrilha, de microguerrilha, de metaguerrilha permanente. Mas para que esses objetivos consigam alcançar alguma materialidade será preciso inventar uma escrita, ela mesma feita de materialidade. Uma escrita material que envolva os sujeitos, para perturbar seu assujeitamento, sua suposta univocidade, para lançá-los no tempo, ou seja, lançar a própria escrita no tempo, na duração. Tal escrita seria produto e produtora da duração e de um abalo nos ritmos temporais impostos por forças que não as da criação e da vida. Suas forças seriam convertidas em intensidades impessoais e, mesmo que momentaneamente, os indivíduos conseguiriam experimentar os tremores de um si mesmo heterogêneo e em devir.

Para nossa sorte, essa escrita já foi inventada. Ela remonta a uma longa tradição de escritores e artistas, principalmente daqueles ligados ao que se convencionou chamar de vanguardas. Um dos precursores desse tipo de escrita, a que nos interessa aqui, talvez seja Raymond Roussel. O autor publicou seus livros na virada do século XIX para o XX, conquistando um fervoroso séquito de admiradores nas mais diversas artes. Num primeiro momento, impressionou a todos a imaginação, aparentemente sem limites, expressa em suas obras. Contudo, após sua morte, para surpresa geral, veio à luz um livro planejado por ele mesmo, “[...] deixado com seu advogado, com orientações restritas para sua publicação póstuma [...]” (Terron, 2015, 8). O escrito revelava um insuspeito (e bastante peculiar) método de criação, que ficou conhecido como “o procedimento” (Aira, 2013, 6). Um artifício de produção que poderia ser descrito como “[...] essencialmente um procedimento poético [...]” (Roussel, 2015, 44), uma vez que fazia uso de rimas, homofonias, paronímias, jogos de palavras etc. Onde o mais importante era o desencadeamento de certa “[...] criação imprevista devida a combinações fônicas [...]” (Roussel, 2015, 44) a partir da qual as histórias seriam desenvolvidas. De tais arranjos formavam-se duas frases muito parecidas, sendo que uma deveria começar o texto, e a outra terminar. Então, a maior parte de suas narrativas consistia no resultado de tal procedimento e na resolução das dificuldades por ele criado. E a escrita, que parecia surgir de uma imaginação sem amarras, era, na verdade, decorrência de problemas eminentemente formais impostos pelo procedimento. Segundo o próprio autor, algo muito próximo de “equações de fatos” (Roussel, 2015, 46) a serem resolvidas através da lógica.

Com relação ao procedimento Aira (2007) fará a seguinte provocação: “Os grandes artistas do século XX não são os que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que a obra se fizesse sozinha, ou não se fizesse” (13). Provavelmente porque a metaguerrilha artística (que tende a se expandir para além de si mesma) está sempre à procura de formas ainda inexploradas. Num sentido muito parecido com o proposto por Deleuze (2011b, 33), que sugerirá que os procedimentos levam a linguagem até seu limite para compeli-la a vislumbrar novas figuras do saber e formas de vida ainda desconhecidas. Aira (2007, 13), por sua vez, afirmará que se existe uma ferramenta fundamental de toda arte, dita de vanguarda, ela é o procedimento. O procedimento seria uma tentativa de incorporar novamente alguma radicalidade aos fazeres artísticos. Metaguerrilha ou metavanguarda, procedimentos de guerrilha escritural, por meio dos quais “[...] o escritor se libera de suas próprias invenções, que de algum modo sempre serão mais ou menos previsíveis, [...] a maquinaria fria e reluzente do procedimento luz como algo, enfim novo, estranho, surpreendente” (Aira, 2013, 6).

Por isso, uma escrita de guerrilha é aquela que inventa ou toma emprestados os procedimentos com que produz seus estilhaços, sejam eles de linguagem, de realidade ou dos sujeitos implicados no processo. O objetivo principal é o de trazer para o primeiro plano a dimensão material inseparável de toda escrita: articular, por meio dos procedimentos, as semiologias significantes, as semióticas a-significantes e a dimensão existencial. Dito de outra forma, a linguagem, o suporte e os sujeitos. Os sujeitos que cortam a linguagem e são cortados por ela, e pelo mundo, produzindo ritornelos existenciais. Ou seja, experimentando, ainda que momentaneamente, a dissolução de um si mesmo unitário e a suspensão de um espaço-tempo prescrito e prescritivo. Estabelecendo-se, dessa forma, certo território (zona) existencial onde, quem sabe, se possa tocar o tempo-duração, tempo da experiência necessário à produção de um si mesmo.

E se Pignatari nos mostra que a metavanguarda é uma espécie de metaguerrilha, suspeitamos de que a escrita desencadeada pelos procedimentos é um tipo de poética de si mesmo, de poiese, de autopoiese, de metapoiese. Os procedimentos talvez sejam os coquetéis molotovs de uma metaguerrilha permanente, de uma metapoiese permanente. Uma batalha pela retomada do futuro.

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Recebido: 12 de Agosto de 2022; Aceito: 26 de Agosto de 2022

Luiz Carlos Quirino da Silva é Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, possui Mestrado em Educação e Licenciatura em Ciências Sociais pela mesma universidade. Desenvolve pesquisa vinculada ao Grupo de Estudos Ateliê de Educação Potencial (AtEdPo). Participa do Grupo de Pesquisa Microscopias, Educação, Imanência (POÏEIN). Tem interesse na articulação entre escrita (sobretudo ficcional), educação, literatura e arte.

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