1. Desigualdades em imagens
Em 2019 participei de duas iniciativas transnacionais que buscavam reunir pesquisadores das Humanidades, Ciências Sociais, Comunicações e Artes em torno de questões candentes na vida contemporânea. O Encontro anual do Consórcio de Centros e Institutos de Humanidades (CHCI) e o Mellon Global Institute sobre a Crise da Democracia procuraram inserir a cultura no debate sobre a crise política advinda da ascensão pelo voto de lideranças populistas que uma vez no poder se dedicam a reduzir os espaços constitucionais, e em diversos casos legitimam discriminações religiosas, étnicas, de gênero, ou de classe, em nome da desregulamentação econômica. Ambos os casos potencializaram minha pesquisa em curso, e me estimularam duplamente: como antropóloga e estudiosa do cinema e do audiovisual, tentando entender o lugar da cultura audiovisual nas definições da vida contemporânea; como pesquisadora brasileira, tentando entender a inserção do Brasil, no sul global, em meio a essas situações. A pandemia de Covid 19 intensificou fluxos de desinformação política e de saúde, confirmando a relevância das imagens em movimento e sons para informação, desinformação e imaginação. Permanecem as questões sobre a crise da democracia, o aumento exponencial da violência de Estado e do crime organizado. O que pode o cinema e o audiovisual contra a violência de estado e a violência do crime organizado? Em que medida as ameaças contemporâneas à democracia podem ser compreendidas como reações, no sentido literal, às transformações inclusivas vividas no Brasil a partir dos anos 1980 e à efervescência cultural e política que ela gerou?
A crise da democracia é em geral abordada no âmbito da política institucional, relacionada à ascensão de líderes populistas e nacionalistas, a desigualdades sociais crescentes em diversas partes do mundo, especialmente em lugares onde forças democráticas sofreram derrotas recentes. O quadro de empobrecimento e de aumento das desigualdades ameaça a democracia de descrédito em países que fizeram dela seu alicerce, como os Estados Unidos ou a Inglaterra. A pandemia mundial de COVID 19 com sua prolongada interrupção da vida cotidiana acentua desigualdades pré-existentes entre nações e no interior das nações, no caso brasileiro favorecendo a regressão a níveis de pobreza que pareciam superados. As situações de guerra, imigração forçada, localizada em partes castigadas como o Afeganistão, o Líbano, o Iraque, a Síria, nos chegam em imagens de barbárie e ruínas, que lembram situações de desenraizamento forçado, em outros tempos. Recentemente a guerra na Ucrânia e o aumento dos investimentos em armamentos atualiza a memória de guerra na Europa, que entre muitas outras diásporas, forjou a migração da minha família. No Brasil, a violência, o racismo, e os ataques às terras indígenas nos lembram que a barbárie está entre nós.
O Brasil foi até meados da década passada um case promissor em um mundo ameaçado pelo aumento da desigualdade social. O Brasil se transformou nas últimas décadas como resultado do investimento contínuo em áreas como saúde, educação (Arretche, 2015 & 2018) e como resultado da ampliação dos direitos, processos garantidos pela Constituição de 1988 (Vieira, 2018). Análises comparativas com outros países do chamado BRICS sugerem a robustez das melhorias brasileiras, enraizadas nos municípios, de maneira descentralizada (Heller, 2015). Políticas inclusivas paulatinamente instaladas depois do controle da inflação, transformaram o país promovendo ascensão social de amplos segmentos da população, que chegaram inclusive à universidade e aos anteriormente exclusivos cursos de Cinema e Audiovisual. Como as imagens sonoras participaram desse processo? Em que medida a diversificação de meios e formas favoreceu a emergência inédita de novas vozes? O que podem o cinema e o audiovisual frente aos desafios postos pela crise da democracia, pela economia predatória (Latour, 2004) e pelo esgotamento de modos de vida baseados na lógica utilitária (Sahlins, 1976)?
A partir de dois trabalhos de Adirley Queirós, Branco sai, preto fica e A cidade é uma só?, esse artigo revisita títulos e formas audiovisuais que circularam e reverberaram aproximadamente entre 1984 e 2014, na tentativa de alinhavar elementos de um debate fílmico. O mapeamento da diversificação de vozes ocorrido nas últimas décadas chama atenção para formas que apontam futuros e que mobilizam realizadores audiovisuais preparados para enfrentar os desafios postos pelos ataques à diversidade, às estruturas de seguridade social, e à democracia. Espero chamar a atenção para o potencial das imagens em expressar tensões e esperanças nem sempre captadas pelas estruturas convencionais da política institucional.
A circulação de imagens e sons em redes de TV aberta que transmitem via satélite, em redes de TV a cabo, UHF, Internet, plataformas de streaming, redes de telefonia, auditórios de cinema, e televisão e mídias digitais, ajuda a mapear o espaço público, circuitos públicos e privados; zonas que se expandem ou encolhem. Regiões de dobras. O mapeamento rela a superfície das imagens, apenas para sugerir. O tema das desigualdades como eixo transversal a partir do qual será possível circunscrever uma vertente do audiovisual e através dela o amplo processo de diversificação dos mecanismos de produção e circulação das imagens em movimento, iniciado nos anos 1980 e paulatinamente aprofundado com a introdução de mídias sociais e a disseminação dos telefones celulares e do acesso à internet. A partir do início dos anos 2000, a tecnologia digital favoreceu essa desconcentração em diversos países do mundo. Porém no Brasil e possivelmente em outros lugares, atravessados por altos índices de desigualdades sociais, e por altos níveis de concentração no sistema de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais, o significado dessa diversificação tecnológica adquire dimensões políticas. Pesquisas recentes sugerem que as redes sociais abrigaram diferentes grupos organizados em torno de ideias liberais, impostos, regulamentações trabalhistas, ambientais, previdenciárias vistas como empecilhos à livre circulação do capital (Rocha, 2005; Rewald, 2018). De maneira análoga, talvez no campo oposto, o cinema e o audiovisual penetra segmentos antes excluídos do fazer imagens e sons. Rastreio esse movimento de diversificação de vozes examinando uma sequência de vídeo clipes, filmes, séries, que debate como filmar as desigualdades e a discriminação de classe, cor e gênero sem contribuir para reforçar a discriminação.
O recorte aqui proposto envolve um campo que no século XXI se tornou bastante extenso, de obras filmadas em comunidades populares, locações que carregam inscrições visuais da desigualdade social, e que abrigam moradores muitas vezes pretos e mulatos. Comunidades urbanas, Ceilandia, Santa Marta, Cidade de Deus, celebrizadas em filmes, séries, clipes. No interior desse campo vasto e aberto, que continua gerando expressões sensíveis em torno de questões como quem filma o quê, como e aonde, me restrinjo nesse texto a alguns títulos pioneiros, com os quais é possível relacionar os filmes de Adirley Queirós.
Comunidades se distinguem na paisagem urbana das metrópoles brasileiras. A arquitetura de autoconstrução, baseada em pequenas casas originárias de barracos, que vão se tornando de alvenaria e podem ganhar um ou dois andares, as vielas estreitas, contrastam com o padrão de edifício altos, arruamentos asfaltados, com guias e calçadas, que vai se tornando obrigatório. Nas comunidades o acesso a diversos serviços melhorou ao longo das últimas décadas. No entanto o contraste como o “em torno” mais ou menos próximos também se tornou mais radical. A especulação imobiliária constrói edifícios cada vez mais altos. Bairros de casas residenciais resistem, mas vão se tornando raros. Construções monumentais em escala arrebatam a visão, eliminam parcelas do céu e do sol.
As relações entre índices de desempenho sócio econômico e cultura não são presumíveis, ou previsíveis. João Cezar de Castro Rocha (2005) detecta no livro de Paulo Lins, na literatura de Ferréz, no rap dos Racionais, o que ele define como a dialética da marginalidade, em oposição ao que Antônio Cândido, em seu célebre ensaio, denominou a dialética da malandragem (Cândido, 1970). O artigo se aventura no cinema, mas sua base está na literatura contemporânea, onde Rocha encontra não o que Cândido considerou “ausência de juízo moral” ... “mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal”; mas o confronto em vez da conciliação, a violência explícita no lugar do ocultamento do conflito que caracterizaria o que denomina “a guerra de relatos”. Pensar em termos do possível rompimento da dialética da malandragem ajuda a entender o desconforto provocado há exatos 20 anos por Cidade de Deus um filme que como o romance do qual foi adaptado, e ao contrário do livro de Manuel Antônio de Almeida, datado do início do século XIX, quase 200 anos antes, explicita discriminações de raça, classe e gênero? As imagens cinematográficas, captadas em película, trabalhadas e editadas em digital e exibidas em 35 mm na tela grande, talvez amplifiquem desconfortos diversos para com a explicitação desses conflitos. O desconforto produz diversas versões alternativas desse cotidiano distópico tomado pelo conflito entre polícia e crime organizado, no meio do fogo cruzado os moradores. Entre essas alternativas, o trabalho de Adirley Queirós se destaca por sua potência estética, ao tencionar as fronteiras do documentário para produzir documento de casos de violência racista de Estado.
2. Branco sai, preto fica e A cidade é uma só?
De início o ruído de algum motor ligado. Interrompe. Letreiro situa no tempo passado e no espaço de uma cidade “satélite”: “antiga Ceilândia, Distrito Federal”. O ruído recomeça. Agora é possível vislumbrar a lateral de uma parede, um descampado, um pedaço de parquinho e uma edificação de quatro andares. A câmera vai subindo em um movimento que poderia ser de grua para revelar, por trás e acima da parede, um telhado e outras edificações à esquerda: fragmento da paisagem urbana e noturna em um bairro popular. Não há pessoas à vista. O corte brusco marca transição para um plano interior longo e próximo que descreve uma ação pouco usual: um homem preto em uma cadeira de rodas, em contra plongé, desce uma escada estreita em uma plataforma motorizada. O motor produz o único som que ouvimos enquanto o personagem se movimenta em direção à câmera.
O ambiente é apertado, o pé direito é baixo. Ao sair da plataforma móvel, Markim se movimenta em direção a uma rampa que o levará mais um lance para baixo, na direção contrária. A câmera se move um pouco para a direita, para acompanhar essa operação, a partir do mesmo lugar, agora em plongé. A descida rumo a um porão, espécie de oficina/estúdio é mais rápida. Mas o plano continua. Ao fundo vemos um monitor LED: tela repartida em quatro exibe imagens de câmeras de segurança. O personagem se desloca de maneira ágil em sua cadeira, seu movimento em direção à profundidade do campo, e para longe da câmera, revela o ambiente cheio de traquitanas e equipamentos.
O filme constrói esse espaço exíguo, tortuoso e secreto, de autoconstrução, que contrasta com a amplitude dos espaços monumentais edificados no plano piloto da capital federal. Um porão encantado, um bunker secreto, uma cabana do Batman, o cérebro da Matrix, ou a estação de rádio que encorajava o personagem de Easy Rider: a sensação é a de um lugar de comando. O rapper e DJ se posiciona em sua mesa de som e passa a narrar com detalhes os acontecimentos de uma festa ocorrida em março de 1986. Antes de começar, ele coloca um LP na vitrola e o fone no ouvido. A batida entra junto com a voz em primeira pessoa do singular; o tempo é o presente, na antiga Ceilândia, cerca de 30 anos antes do tempo do filme: “É domingo, 7 horas da noite, já tô com meu pisante”. A narrativa continua em ritmo de rap a narrar os passos do dançarino naquela noite a caminho de um baile. A casa de amigos, a chegada ao salão, aproximações às meninas para escolher com quem ficar, o jogo de sedução para conquistar a moça, os recados enviados a ela. A voz do locutor soa clara e expressiva, ajudada pela ginga da parte de cima do corpo. Imaginamos o ambiente descrito pela voz desse narrador autobiográfico como se estivéssemos também naquela viagem interrompida pelo som repentino de uma explosão seguida de pânico.
A verossimilhança da locução não é abalada pelo contraste entre o plano sonoro, preenchido pela narrativa envolvente, no passado, e o plano imagético, que revela os dispositivos do DJ - mesa de som, microfone, gravadores e arquivos de som, no presente. Um longo plano de perfil do artista acompanha a sua performance. O personagem fala ao microfone como se estivesse em cada um dos lugares mencionados, sem sair de sua mesa de som. A sua locução descreve um percurso, o seu deslocamento entre um local e outro, a caminho do baile no Quarentão na noite daquele domingo.
Efeitos de foley pré-gravados são inseridos por ele mesmo em sua mesa de som -instrumento de trabalho- naquele porão solitário, nos dá a ver a construção da narrativa sonora. A força da interpretação nos transporta. Estamos com Markim, há quase 30 anos, na cena do crime. A sua performance vocal é ritmada. O corpo balança ao microfone. A música “Ih, o baile vai ser louco aqui no Quarentão. Os moleques tão de quina me esperando, irmão...” é ilustrada com fotos de still, imagens de arquivo, roupas de algumas décadas atrás, crianças dançando break, fragmentos de evidências imagéticas daqueles tempos.
No rap o personagem dialoga com seus interlocutores de então. Estamos nos domínios da memória, viajamos no tempo com o protagonista ainda enquadrado de perfil em um longo plano próximo. “Vou começar um passinho novo, assim ó, a cabeça...”, ele guia a parceira. A parte visível de seu corpo ginga, manda recado para Paulinha, que está esperando perto da escada. Mas “tá acontecendo alguma coisa”. Som de explosão, imagens still de multidão em festa, antes do ataque: “é os cana [...] spray de pimenta [...]”. O plano médio acompanha o gesto que comanda a mesa de som. Silêncio. “Pararam o som!”; O narrador passa a proferir falas alternadas interpretando o diálogo desigual entre o policial abusivo e o cidadão impotente. A frase pronunciada pelo agressor encerra a introdução do filme: “Bora, puta prum lado, viado pro outro! Bora Porra! [...] Tá surdo negão? Tô falando que [...] Branco sai, preto fica, porra!”.
Branco sai, preto fica (2014), filme de Adirley Queirós, vencedor do Festival Internacional de Brasília 2014, foi produzido e se passa em Ceilândia, cidade satélite cujo nome vem de Campanha para Erradicação das Invasões, eufemismo para o programa de “limpeza urbana”. Programas semelhantes de transferência de populações para locais longínquos e sem infraestrutura, foram levados a cabo em diversas capitais brasileiras durante os primeiros anos de ditadura militar, entre as quais Brasília e Rio de Janeiro. O caso de Ceilandia no Distrito Federal é parecido com o caso de Cidade de Deus na ex-capital.
A história da criação de Ceilândia (CEI), e a história da campanha publicitária que cercou a transferência das famílias dos operários que trabalharam na construção da nova capital para fora dos limites do plano piloto é assunto do filme anterior do mesmo diretor, A cidade é uma só (2011), sobre a campanha publicitária que cercou a operação de higienização da cidade modernista no início dos anos 1970 e sobre os desdobramentos dessa espécie de apartheid social no presente, quando se comemoravam 50 anos da inauguração da capital. Ao expor a paisagem acanhada de Ceilândia, ambos os filmes salientam com ironia o contraste com a paisagem monumental do plano piloto. Em ambos os casos, os filmes sugerem a falta de cidadania plena na cidade satélite. A expulsão do plano piloto de moradores pioneiros na ocupação da capital modernista, agora considerados como invasores. Na ficção futurista, a necessidade de passaporte para entrar em Brasília.
Em ambos os filmes, Adirley Queirós consolida um estilo contundente e original que expande os limites do documentário, usando de recursos de encenação para fazer do próprio filme documento da história que vive na memória de pessoas que habitam um lugar carente de arquivos. Personagens que protagonizaram os eventos abordados conduzem a narrativa em um misto de depoimento pessoal e performance que subverte as convenções do gênero documentário. Em Branco sai, preto fica e em Era uma vez Brasília, seu filme seguinte, o documentário flerta com a ficção científica.
Esse lugar entre gêneros constrói um cinema original que dialoga com a reflexão internacional sobre o cinema e a produção de evidências que ajudam a enfrentar o trauma causado por diversas formas de violência de estado.
Branco sai, Preto fica conta o caso de dois amigos negros, um músico e um jogador de futebol, que perderam o domínio sobre o movimento de suas pernas, vítimas da violência policial em um baile no Clube Quarentão, em Ceilândia, março de 1986. A história dos dois é investigada por um terceiro personagem, este de ficção científica, um “agente” encarregado de viajar ao passado para levantar evidências a serem usadas em um processo contra o Estado, numa ação de reparação. Branco sai, preto fica é precário como ficção científica. Um container prateado que chacoalha como uma nave recebe mensagens audiovisuais de sua base no futuro. A pesquisa do agente do futuro se materializa em recortes de jornal pendurados na parede da nave espacial. Mas a ênfase do filme é na construção espacial. O filme nos dá a ver a Ceilândia contemporânea, autoconstrução plena de imaginação, apartada do monumental plano piloto.
A cidade é uma só, filme anterior do diretor feito com financiamento de um edital que comemorava 50 anos da inauguração de Brasília, a capital federal, cidade modernista expressão radical do projeto do Brasil como país do Futuro. O filme articula imagens de arquivo como a voz de Niemeyer, a falar sobre o projeto que se tornava realidade, trechos de reportagem de época, entre outros. Construído em torno de três personagens, Nancy, a menina selecionada para participar da propaganda oficial da campanha de “erradicação de invasões” que higienizou o plano piloto transferindo os pobres para as cidades satélites; Dildu, o candidato a vereador pelo Partido da Correria Nacional, faxineiro no plano piloto e seu cunhado e corretor de imóveis que o ajuda na campanha. A encenação e o documentário se articulam de maneira a produzir documentação sobre um lugar desconhecido pelo público que não mora lá. Na falta das imagens de arquivo, o filme não hesita em produzi-las, se constituindo assim ele mesmo em arquivo.
Em 1969-71as crianças das favelas de Brasília foram cooptadas para cantar na televisão o jingle que pedia ajuda de quem tem um bom lugar para morar, “Nos dê a mão, ajude a construir nosso lar; para que possamos dizer juntos: a cidade é uma só”. Sobre a voz das crianças imagens das ruas descampadas de Ceilândia, ironicamente contrastantes com o plano piloto, cuja planta em forma de avião se esvai em chamas na primeira e na última sequências do filme. Depois dessa iniciação oficial, Nancy se tornou cantora. E rege o coral infantil produzido pelo filme para encenar o jingle com figurino de época, em uma recriação da peça publicitária perdida. O registro em p/b e baixa resolução produz o arquivo inexistente.
A imaginação cinematográfica no caso do cinema de Adirley Queirós funciona para colocar o dedo na ferida, abordar episódios traumáticos da história de uma comunidade que vive à margem do centro de poder político do país e à margem da imagem, citando o título de documentário de Evaldo Mocarzel sobre moradores de rua na cidade de SP e suas relações com as imagens. A imaginação cinematográfica funciona também como espaço onde vítimas da ação criminosa do estado dão a volta por cima: elas contam sua história, nos guiam pelos espaços de sua comunidade, cuidadosamente enquadrados de maneira a mostrar horizontes amplos, e a ocupação criativa desses espaços. O filme é documento denúncia de um evento de violência de Estado, aberração viva na memória de membros da comunidade que registram seu testemunho, que ganha a memória coletiva mais ampla. O filme registra pesquisa de arquivo mal sucedida em busca das imagens de jornal e TV sobre a operação de transferência da população. Diante da ausência de materiais de arquivo, as vítimas de então conquistam o espaço fílmico e é de sua posição no controle da produção das imagens, que elas produzem documentos, evidências, como que a compensar a falta de arquivos. A mutilação de seus corpos não os impede de viver, compor, ter um negócio de próteses, que nos lembra os veteranos da guerra do Vietnam. Principalmente a agressão não os impede de escolher os termos da encenação de sua própria vida. Compartilhar o trauma como forma de superá-lo. Contar a história a partir da posição de quem conquistou o poder de contar a história.
Os filmes de Adirley Queirós visitam convenções de gênero, do documentário e da ficção, para propor um nicho próprio: o de filmes que produzem arquivo, de documentos e testemunhos. Os filmes de arquivo, na esteira da elaboração foucaultiana sobre o que a organização dos arquivos e dos saberes nos diz sobre a organização dos poderes que eles documentam, possuem força própria. Arquivos de imagens e imagens de arquivo são manipulados de maneira a sugerir novas interpretações possíveis daquilo que os arquivos se propõem a documentar. Documentários nessa linha podem também documentar relações entre sujeitos e materiais de arquivo, gerando material adicional sobre as condições em que certos materiais foram produzidos e sua transformação no presente. Por vezes esses sujeitos são testemunhas da história que os arquivos por si só não contam. O cineasta pode estar implicado pessoalmente, na primeira pessoa, nas situações que os arquivos parcialmente representam. Ao problematizar arquivos, o cinema tem se movido para além das representações que certos sistemas de classificação e organização do conhecimento produzem. Branco sai, preto fica e A cidade é uma só? expõem a ausência de arquivos e vão além dessa denúncia para SUPRI-LA. Os filmes se constituem em arquivos de casos aberrantes, que continuam vivos na memória das pessoas que os viveram.
Ceilândia é o território comum aos dois filmes, espaço que permite articular a memória de pessoas que vivenciaram situações traumáticas, atualizações da discriminação de Estado, mobilizada na forma do depoimento. Mas não qualquer depoimento. A estratégia da encenação potencializa o depoimento. Nos dois filmes Markim fala como DJ, como músico, como autor de jingles, como motorista de seu próprio carro, como senhor de seu estúdio. Sua figura é inspiradora de autonomia, superação, potencia a serviço da memória local e da transformação contemporânea que exige reparação.
Em 2011, logo após a eleição de Dilma Rousseff, A cidade é uma só sugeria a permanência da desigualdade política inscrita no contraste da paisagem urbana Ceilandia/Plano Piloto. A sequência final do filme, em que Dildu, o candidato do Partido da Correria Nacional vê sua campanha independente e voluntarista, suplantada pela carreata da candidata oficial, vista hoje, pode ser considerada premonitória. A estrutura da política profissional invade o reduto do candidato fictício como que a realçar o descompasso entre o partido governante e sua base popular. Em 2014, ano em que o cineasta fez seu primeiro longa, enquanto a Comissão da Verdade investiga os porões da ditadura militar, Branco sai, preto fica sugere a investigação em arquivos sintomaticamente mais obscuros: os da violência de Estado já em tempos de Nova República. A violência de Estado aqui não é contra inimigos políticos, é contra a população discriminada por sua cor.
O primeiro longa metragem de Adirley Queirós adensa uma efervescência em curso há pelo menos 20 anos nos bairros populares, nas periferias, nas comunidades brasileiras. Ao se apropriarem dos mecanismos de construção da expressão audiovisual, diversos coletivos e realizadores, constroem suas próprias narrativas, oferecendo novos pontos de vista e modificando as relações de alteridade inscritas no audiovisual brasileiro. Ao introduzir paisagens de Ceilândia no repertório audiovisual, Adirley Queirós contribui para diversificar nosso acesso a lugares e pessoas que possuem pouca existência nas telas de cinema ou televisão. Muitas vezes, quando aparecem, esses lugares são reduzidos a redutos de miséria. Seu trabalho encara o desafio de mostrar uma geografia humana diferente do que se imagina.
Bairro em expansão, coalhado de casas de autoconstrução. A rodoviária de dimensões respeitáveis. Computadores, gravadoras, rádio, DJ, música, futebol. Um lugar habitado por gente que canta, que compõe, que toca instrumentos, que trabalha como corretor, que sonha em ser político. Filmar com ênfase nos espaços abertos, ruas, casas, becos iluminados pela luz do sol, pontuados pela passagem do trem. Os cenários escolhidos e a forma de filmar esses lugares valoriza horizontes relativamente abertos na tentativa de tratar de situações traumáticas recorrendo a formas que contribuam para desarticular estigmas.
O cotejo de elementos documentais com a encenação expande o universo do documentário, introduz humor e reforça o tom irônico do filme. Dildu, a personagem ficcional que encara o trabalhador faxineiro dedicado, que quer ser vereador, mas que não encontra espaço nas estruturas políticas institucionais. Seu isolamento fica escancarado em contraste com a carreata profissional, composta de enormes caminhões usados na campanha oficial de 2010.
A ficção científica apela para cidadãos do futuro, onde as atrocidades do presente e do passado recente possam ser resgatadas em chave de compensação. A ficção científica justifica a produção de testemunhos e a imaginação de uma revanche simbólica, um filme bomba. A chave desses testemunhos não é o depoimento acanhado de frente para a câmera escrutinadora, em busca das cicatrizes e das lágrimas daqueles que tiveram suas pernas amputadas ou que perderam os movimentos das pernas. A performance do DJ em seu porão encantado; a ginga que sobrevive à paralisia do corpo paraplégico falam mais forte. Para além do documentário e em favor do documento.
3. Interlocuções Fílmicas
Há no ar mundial uma espécie de backslash a ameaçar as conquistas humanistas e de bem-estar social do pós-guerra. Um cosmopolitismo humanitário, diversificado, e aberto às diferenças culturais, religiosas, étnicas, com o qual o cinema e o audiovisual em larga medida se identificam, se choca contra formas diferentes de fundamentalismos ao redor do mundo. Em muitos casos, o cinema e a televisão estão entre os alvos desses movimentos totalitários. A guerra é também de imagens.
No Brasil há 20 anos, em 2002, na contramão do que ocorria em outras partes do mundo, a economia prometia abundância e a política acenava com a possibilidade do aprofundamento e consolidação da democracia. O cinema então rompe com a primazia que a televisão aberta ainda dispõe, trazendo para o primeiro plano do debate público, a vida em uma comunidade carioca dilacerada pela ação violenta do Estado e do crime organizado. Filmado em locação, sem atores celebridades, em sua maioria pretos, Cidade de Deus provocou debates acirrados na própria comunidade, na imprensa e na academia. O filme chocou, ofendeu, foi responsabilizado por reforçar preconceito e discriminação, além de fazer rara bilheteria e ser festejado no exterior (Bentes, 2002 & 2004; Bernardet, 2002; Bill, 2003; Nagib, 2003).
Minha intenção ao voltar a esse assunto depois de duas décadas é sugerir que a sequência de filmes, documentários, vídeo clipes que irrompe no final dos anos 1990, quando a inflação estava finalmente controlada, é sugerir que há no campo do cinema e do audiovisual um processo de apropriação da linguagem e da tecnologia que se desenvolve mais ou menos em paralelo à expansão de direitos democráticos e à diminuição da pobreza. Como se finalmente em condições de se expressar, vozes emergentes trazem à tona o ressentimento e a denúncia da cidadania incompleta que mata e estigmatiza nas comunidades e bairros populares, sujeitas à violência de estado e à violência do crime organizado.
O vídeo clip de Michael Jackson dirigido por Spike Lee, They don’t care about us (1996) precede essa onda de livro e filme (Vieira, 2004). Filmado na comunidade de Santa Marta, de onde se avista marcos paisagísticos típicos dos cartões postais do Rio de Janeiro, como o Pão de Açúcar, o clipe inclui a participação de moradores da comunidade. No Pelourinho, os integrantes do Olodum em suas diversas formações, crianças e adultos, dançam e cantam com o ídolo. A vinda de um dos mais populares artistas pop para contracenar com moradores do morro e percussionistas e sambistas do Olodum ao som de um hit internacional, que justamente canta o abandono e a discriminação, dá à música um caráter de testemunho para o mundo, e os espaços e corpos filmados ganham o sentido de evidência. Ao incorporar pessoas, gingados, batuques e paisagens Michael Jackson promove esse “nós” que a música canta a um coletivo de periféricos que o inclui, malgrado seu branqueamento e sua condição de celebridade. Ao mesmo tempo, seu protagonismo, de quem se associou a Spike Lee na iniciativa de vir gravar no Brasil, o distingue desses locais, moradores do Sul Global.
Embora em geral não lembrada, a cineasta Kátia Lund participou, na equipe de produção, dessa experiência, e a partir dela dirigiu vídeo clipes de rap, então em ebulição, com janela de exibição específica no programa Yo da MTV (Caldeira, 2007; Kehl, 2000). A franquia UHF do canal musical norte-americano, popular na juventude, foi espaço privilegiado para esses e outros clipes que cantavam e mostravam paisagens periféricas em uma época em que a falta de espaço na mídia era um dos assuntos tematizados pelo rap e pela literatura marginal, a invisibilidade como evidência de discriminação (Bentes, 2006; Pedroso, 2006). A presença da cineasta estabelece uma ponte entre o clipe de Jackson e filmes que se seguiriam na vertente que recebeu a alcunha de filmes de favela. Um levantamento exaustivo não cabe nos limites desse artigo, que se limita a buscar em Notícias de uma guerra particular (1999) co-dirigido com João Moreira Salles, em Cidade de Deus (2002) com Fernando Meirelles, elementos para entender a efervescência que se segue na experimentação de alternativas às opções visuais e também a pontos de vista apresentados nesses filmes.
Em 1997 Paulo Lins publicou pela editora Companhia das Letras, por indicação do crítico Roberto Schwarz o livro Cidade de Deus uma ficção com pitada de testemunho, já que o autor foi morador do conjunto habitacional que dá nome ao livro, e participou de um estudo antropológico dirigido pela professora Alba Zaluar sobre a violência no local, enquanto cursava Letras na UFRJ. O livro conta a história do conjunto habitacional que originou o local no final dos anos 1960, durante o governo Carlos Lacerda, já sob a ditadura militar que encorajou ações “higienizadoras” semelhantes em outras partes. A narrativa não é linear. Em estrutura espiralada, pessoas e núcleos aparecem e desaparecem, aniquilados por uma “banalidade do mal” aparentemente sem centro, sem campanha, sem registro organizado. Os arcos dramáticos das personagens são limitados. Seus tempos são curtos, como a vida.
O rompimento da invisibilidade na mídia da qual artistas periféricos reclamavam em seus textos literários e em suas músicas logo daria lugar ao debate sobre as identidades dos cineastas, mas também sobre visualidades propostas em diversos trabalhos, documentário e/ou ficção que se encarregaram de trazer paisagens periféricas para as telas.
Paulo Lins é um dos entrevistados em Notícias de uma guerra particular, filmado em 1998. Como diz textualmente em over o narrador, cuja presença se limita aos primeiros minutos de introdução ao documentário, o filme encontrou no morro de um lado a polícia, de outro os traficantes e “no meio do fogo cruzado o morador”. O depoimento de Paulo Lins em Notícias sintetiza o argumento de Cidade de Deus (2002), livro e filme. Esse argumento se apoia na memória da experiência do autor como pertencente (Kornis, 2006) e também estudioso da comunidade onde morou. A entrevista concedida ao documentário tem o tom do testemunho que registra uma história não oficial, porém marcante na vida cotidiana dos moradores de comunidades cariocas: nos anos 1980 o narcotráfico tomou conta e a partir daí a violência deixou o código da malandragem, para se tornar endêmica, profissional, com requintes de crueldade. Notícias adota um dispositivo que dispensa o narrador ao fim da introdução e passa a alternar imagens e depoimentos que procuram complexificar cada uma das posições no conflito definido na abertura. Uma cartela apresenta os diversos capítulos do filme. Cada cartela entra ao som de um projetor de slides quando se passa de uma imagem a outra, como se cada capítulo apresentasse um retrato da pessoa entrevistada e da situação que ela, como membro de uma das categorias sistematizadas no filme (polícia, traficante, morador). Há material de arquivo, especialmente sobre a fundação do Comando Vermelho na Ilha Grande nos tempos em que traficantes conviviam com presos políticos.
Em montagem rápida e picotada, Cidade de Deus conta a história cronológica da Cidade de Deus, sua primeira fase, com iluminação clara e cores em tons amarelados, ainda sob a égide da malandragem, e sua situação nos anos 1980, em tons escuros e azulados, que acabam por sugerir o tempo presente ao lançamento do filme. Essa história linear é no entanto narrada em uma sequência de flashbacks e flash forwards. As vezes um flashback dentro de um flashback, como um quebra-cabeças. A referencia de Cidade de Deus a Notícias de uma guerra particular está sintetizada na célebre sequência inicial: a perseguição da galinha fugitiva (Hamburger, 2018). O bando de Zé Pequeno se diverte na corrida pela recaptura da ave, que escapou quando estava prestes a ir para a panela. A câmera em movimento descreve a geografia de uma comunidade carioca marcada por vielas íngremes e estreitas, acompanhando a fuga da ave na altura dela, rente ao chão, para em fim situar o narrador frágil (Xavier, 2006) literalmente “no meio do fogo cruzado", polícia de um lado, bandidos do outro. O tom escuro azulado da maior parte do filme, que se passa nos anos 1980, mas aparece contemporâneo, na cidade ocupada pelo tráfico; a sucessão de confrontos e mortes na comunidade como se ela fosse autossuficiente, isolada do resto da cidade; os efeitos do óleo que realçam a pele negra como superfície lisa, brilhante, são algumas críticas que transformaram o filme em um tabu. A força acachapante da narrativa confinada à uma comunidade, embora não tenha sido, em sua maioria filmado lá (Machado, 2016) com rápidos e poucos respiros marcaram a imaginação de críticos, moradores de comunidades, estudantes de cinema, e público em geral.
Cidade de Deus reproduziu o preconceito, reduziu a comunidade ao domínio do crime organizado e de seus conflitos, entre si, e com a polícia. Mas Cidade de Deus também demonstrou que comunidades são palcos legítimos para narrativas cinematográficas. Mais ainda, o longa sugere que histórias que abalaram a vida de moradores obrigados a abandonar suas moradias e a se mudar para loteamentos distantes e sem infraestrutura de água, luz, esgoto, transporte, abastecimento, saúde, educação, combinam com as telas de cinema. A cidade é uma só? questiona o lema da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que originou a Ceilândia, e conta a história do engodo a partir das memórias de uma moradora que participou do coral que cantou o jingle que procurava convencer a todos de que Ceilândia seria também Brasília. 40 anos depois ela participa das comemorações do cinquentenário da capital modernista com suas memórias musicais. Adulta, se tornou cantora. Profissional, na falta do arquivo da experiência histórica, reconstitui o coral, uniforme, ensaios, para gravar uma sequência do filme que ficará como registro da experiência. A personagem do candidato inventado por seu lado produz e grava um jingle com os amigos profissionais da área. Documentário que fabrica documentos, enfrenta o trauma ao registrar a encenação da memória. E busca a superação não na omissão do conflito de classe, mas na atualização da situação da comunidade, potencial e limitação.
Em Branco sai, preto fica o diretor radicaliza o dispositivo utilizado em A cidade é uma só, de tencionar dispositivos documentais na encenação da memória de eventos traumáticos causados pela violência racista do Estado brasileiro. Talvez em oposição aos planos excessivamente fechados de Cidade de Deus, a decupagem de Branco sai, preto fica valoriza o espaço urbano de Ceilândia. A construção do espaço cênico do primeiro longa de Adirley Queirós se distancia do documentário observacional, que privilegia a relação entre câmera e personagens. Ao contrário busca construir planos que exibam amplitude espacial, e espaços surpreendentes. A casa de Markim dá para um descampado. As edificações vizinhas compartilham volumetria semelhante: sobrados de no máximo três andares. A casa, oficina e loja de .... na boa lógica da auto-construção tem uma parede a menos. Desse laboratório de próteses se avista a imensidão de casinhas. Lugares inusitados, misteriosos, não se aproximam de tipos. Ao contrário sugerem a imaginação surpreendente dessas duas vítimas de então, que querem reparação e reconhecimento.
Adirley Queirós, Afonso Uchoa, Gabriel Martins e Maurílio Martins, Grave Passô e as paisagens de comunidades urbanas periféricas. Afonso Uchoa, Yasmim Thayná, K-bela (2014), Juliana Antunes, Viviane Ferreira, Juliana Vicente, e muitos outros realizadores das quebradas se apropriam do dispositivo cinematográfico, com proposições que salientam imaginação capaz de imaginar mundos diferentes. Vários deles cursaram cinema e audiovisual, em universidades públicas, caso de Adirley Queirós, formado pela UnB, ou privadas, caso dos mineiros. Na onda de algumas décadas de estabilização econômica, direitos ampliados e políticas públicas inclusivas e estáveis, se posicionam para participar da produção de arte e cultura. Algumas de suas interlocuções prometem horizontes éticos e estéticos que talvez acenem com a superação da dualidade marginalidade / malandragem, ambos conceitos que sublinham a situação de exclusão de quem fala. Filmes de baixo orçamento com financiamento de editais públicos, repercussão internacional e pouco público local.
4. Da sensibilidade a imagens
Imagens matam? (Brink & Oppenheimer, 2012) O debate em torno das maneiras pelas quais o cinema molda a percepção da violência de massa, mas também a performance dela, envolve questões éticas e estéticas sensíveis. Muito desse debate se deu em torno das formas visuais de registrar ou lembrar o holocausto. No campo das séries televisivas, ou do documentário, a espetacularização da tragédia assombra o silêncio que se seguiu ao fim da segunda guerra mundial. Como rememorar sem reforçar a tragédia, sem agredir mais uma vez? Usar a força das evidências documentais? Direcionar a visualidade para a memória, o testemunho oral de sobreviventes, a fala como linguagem alternativa às imagens. É possível depurar o cinema de seu apelo visual sensível? Conter seu potencial de sensibilização? Ou buscar no ato de situar imagens, as condições de sua existência, como cartas em garrafas que nos trazem imagens do passado porque não queremos que se repita. O debate se amplia em torno de outros genocídios. O Khmer Rouge e as estratégias do cineasta Rithy Phan para lembrar sem reforçar a agressão à vítima. Esse XXX entre Claude Lanzmann, autor de Shoah (1985), o documentário baseado em entrevistas com sobreviventes dos campos de concentração e pessoas que de uma forma ou de outra trabalharam na gigantesca operação de perseguição, confinamento e morte dos prisioneiros, George Didi-Huberman em torno do uso ou não de imagens de arquivo. A detalhada reconstituição da operação que permitiu a captação das únicas imagens de uma câmera de gás em funcionamento O uso ou não de material de arquivo, incluindo as poucas imagens fotográficas que como cartas em uma garrafa perdida no oceano demonstram a existência de câmeras de gás, ou a restrição à entrevistas com sobreviventes, empoderados pela possibilidade de contribuir com seus depoimentos que então alternativo ao do melodrama, não escapa do debate sobre como tratar a tragédia sem reforçar a agressão às vítimas. o silêncio e a invisibilidade dele foi quebrada com estardalhaço pela série de TV estadunidense de mesmo título Apropriação (Appadurai, 1999) e multiplicação de vozes e formas em imagens e sons, elas mesmas de disputas e afetos. Interagimos com e por imagens (Beiguelman, 2021), nas políticas da memória (Huyssen, 2000). Diante da pluralidade de interpretações possíveis de um mesmo trecho, de uma obra, seria possível pensar em um limite de variação possível, algo circunscrito talvez pelas próprias imagens sonoras a compor como que uma interface compartilhada por pessoas detentoras de interpretações diferentes?
Ou ainda se pensarmos que as imagens sonoras nos circundam, mediam relações por vezes por meio de outras imagens, teremos que pensar que estamos imersos nas imagens, convivemos com elas - imagens dentro de imagens, o que não quer dizer que os referentes sejam irrelevância, que as imagens tenham perdido sua condição de evidência. Na pandemia, nos tornamos imagem e ao invés de olharmos para o mundo, no modelo da perspectiva renascentista, olhamos para nós mesmos. Ao discutir as relações entre comunidades e suas imagens e sons, as relações de imagens com imagens, ao revisitar uma discussão que foi se transformando na medida em que novos filmes e cineastas que inventaram novas formas de ativar memórias pessoais e coletivas esse artigo pretende contribuir para pensar o potencial propositivo das imagens, pensar com imagens.
Em 2004, em meio à guerra ao terrorismo que mobilizou a Europa e os Estados Unidos depois dos atentados de setembro de 2001, Bruno Latour (2004) publicou um artigo-manifesto em que detecta a falta de energia da crítica diante da força da guerra que se apoderara de tantos domínios da vida. A proposição propõe o engajamento horizontal na invenção de futuros.
Esse artigo se aproxima da preocupação em construir a partir de ruínas, enfatizar o que foi construído ao longo das últimas décadas e como o audiovisual contribui para a diversificação de vozes e também para detectar um processo perverso que corroía na surdina as estruturas que estavam sendo construídas e que transformaram a sociedade brasileira. O artigo reconstitui o processo de diversificação do espaço audiovisual a partir da concentração vigente nos anos 1980, na década seguinte a televisão aberta começava a enfrentar um ambiente mais competitivo, entre as emissoras e delas com os canais a cabo recém instalados. O telefone celular e a internet começavam a se estabelecer, mas ainda restritos. O cinema, em plena retomada, sofria com o fechamento de salas já em pequeno número e concentradas nos bairros ricos das grandes cidades. A sensibilidade cidadã para com a invisibilidade que afeta. A visibilidade que também afeta. No final dos anos 1990 uma efervescência cultural e econômica em comunidades e bairros de periferia, que se aprofundaria nos anos 2000, já era perceptível.
A pandemia mundial de COVID-19 acirrou desigualdades internas em diversos países, assim como desigualdades geopolíticas entre regiões providas de recursos para combater o vírus e regiões pobres, desprovidas de reagentes, respiradores, leitos de UTI, e principalmente condições de confinamento. A pandemia acirrou o debate já existente em torno da crise da democracia, justificou o fechamento político e o controle dos movimentos individuais em outros, acentuou a arbitrariedade e a disposição de forças ultra liberais em aplicar a necropolítica (Mbembe, 2018) de maneira explícita e em desconstruir estruturas públicas de segurança e compensação social. A insistência na aplicação de princípios ideológicos baseados em um laissez faire radical, a articulação de forças transnacionais em torno de ideais pré Hobbesianos, uma utopia de sociedade quase sem estado, a favor da eliminação de barreiras ao livre movimento do capital, no entanto demanda totalitarismo.
A atual crise mundial de saúde e fronteiras acentua a urgência da proposição de novas formas de vida, em oposição a políticas que estimulam a exploração predatória do meio ambiente, baseadas em noções utilitaristas e instrumentais, que reduzem as coisas a mercadorias, força de trabalho humana incluída. Como as artes audiovisuais participam desses embates? O que podem em favor da democracia e da imaginação de futuros? O que nos dizem sobre a crise brasileira? Como a discussão sobre como tratar situações de discriminação e ao mesmo tempo contribuir para desarticular preconceitos relaciona o cinema e o audiovisual brasileiro ao de outras partes do mundo? Pode o cinema e o audiovisual promover encontros? Que papel arquivos públicos de imagem podem ter nesse processo? Em que medida a memória coletiva trabalhada em diversas obras audiovisuais traz à tona sofrimentos acumulados por décadas e séculos de discriminação? Enriquecido com esses repertórios espaços virtuais e arquivos se tornam arenas de disputa pelo controle do que ganha expressão audiovisual, como, em que circuitos. Como a articulação entre diferentes arquivos - pequenos e específicos, grandes e genéricos - pode sinalizar formas de gestão de acervos públicos e privados que privilegiem a circulação de repertórios em prol da imaginação de futuros?
São muitas perguntas. Formas e cores curtas e longas podem ajudar a forjar interlocuções sugestivas que façam o conhecimento se mover em direção à superação das desigualdades, com liberdade e poesia.