INTRODUÇÃO
Sob a perspectiva da arqueologia, independente do assunto a ser tratado no que diz respeito a interpretação dos diferentes contextos e materialidades de uma maneira intencional ou não, a problemática das paisagens sempre fará parte de qualquer premissa, entendendo as dimensões espaciais/geográficas e temporais inerentes as paisagens recorrentes nas discussões arqueológicas. Os conceitos intrínsecos a paisagem como ambientes, ecologia, recursos, espaços e lugares, foram tratados de diferentes maneiras, sob a ótica das diferentes escolas e concepções da arqueologia enquanto ciência.
. (De Barros 2018:20)A arqueologia do século XXI caracteriza-se por ser tanto uma atividade laboral de campo, como uma busca intelectual científica e laboratorial. Tem como principal objetivo o estudo dos variados sistemas socioculturais, que abrangem desde sua gênese estrutural, mecanismos e dinâmicas em relação a permanências, mudanças e transformações culturais no decorrer do tempo e espaço, noções do comportamento humano em relação ao ecossistema, paisagens e fenômenos que intermedeiam essas relações, tendo como fulcro o estudo da cultura material evidenciada em contextos de interação humana
Nesta perspectiva, a arqueologia contemporânea entendida como a mais interdisciplinar das ciências (Araujo 2019; Bicho 2011), se apresenta como uma disciplina humanística e histórica, atuando exitosamente como uma ciência social relacionada as ciências da terra, e mais recentemente acompanha o desenvolvimento das inovações atômicas introduzidas ao campo acadêmico a partir da metade do século XX, resultando em um importante acercamento às ciências físicas e químicas.
Apesar de sua jovialidade no que diz respeito a consolidação de seu corpus teórico e de métodos próprio, num lócus de pouco mais de um século de prática da famigerada história do pensamento arqueológico (Trigger 2004), é possível identificar e caracterizar o arcabouço de compreensões sobre a adoção das paisagens arqueológicas para a elucidação dos espaços ocupados e adaptados pelas práticas socioculturais e comportamentais humanas.
Com uma assertiva orientação das ciências geográficas e ambientais (Morais 2011, 2012; Wagner 1972), passando por uma ampliação e desenvolvimento da ciência por meio do uso de tecnologias espaciais e de sistematização de dados (Binford 1962; Clarke 1972), mais recentemente, adjunto ao novo caráter holístico da ciência arqueológica, temos um acercamento a premissas antropológicas, fenomenológicas e comportamentais (Cosgrove 1984; Ingold 2001; Zedeño & Bowser 2009; Kormikiari 2014), a questão das paisagens ou paisagens culturais possibilitou uma melhor compreensão da relação da interação contínua entre humanos, ambientes e materialidade.
METODOLOGIA
No presente artigo de reflexão tecemos um panorama geral relacionado a paisagem enquanto paradigma teórico em relação ao seu desdobramento na prática arqueológica, levando em consideração sua evolução enquanto conceito e seus diferentes entendimentos, escolas e principais autores, trazendo como principais referências Binford (1962, 1978, 1980, 1983), Kormikiari (2014), Schlanger (1992), Zedeño (2008) e Zedeño e Bowser (2009).
Em uma organização metodológica que valora o enfoque qualitativo permeando a revisão da literatura especializada e suas principais problemáticas, interpretações e significados, com desenho de investigação de narrativa sistemática (Hernández, Fernández y Baptista 2014), onde explicaremos os diferentes processos e fenômenos vinculados à aplicação do conceito de paisagem em relação a ciência arqueológica.
Ocorrendo uma clara linearidade histórica sobre o desenvolvimento da temática, organizamos o presente manuscrito com a proposta de apresentar, correlacionar y contextualizar os principais períodos, autores, escolas e epistemologias que trabalharam com a terminologia das paisagens ou afins, discutindo e reflexionando sobre suas premissas, e por fim, teceremos um breve panorama de atuação e possíveis caminhos para a sequência da temática em seu campo prático e teórico na arqueologia brasileira.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Independente da corrente teórica ou premissa seguida, a arqueologia da paisagem hoje pode ser considerada como um conceito unanime aceito pelos acadêmicos (com alguma formação em arqueologia), sendo possível verificar pelo menos um capítulo dedicado a temática nos diferentes clássicos manuais da disciplina (Trigger 2004; Bicho 2011; Price & Knudson 2018; Renfrew & Bahn 2004), e apesar de sua ampla disseminação enquanto premissa teórica e por vezes metodológica, é factível verificar uma ampla problemática no que diz respeito a sua discussão entre as diferentes escolas e premissas epistemológicas, possivelmente inerentes a ausência de diálogos entre os diferentes grupos, assim como por uma eventual barreira imposta pelo idioma.
A PAISAGEM NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO ARQUEOLÓGICO
Apesar de se tratar de uma premissa que vai além de caracterizar um background onde as relações humanas são tecidas (Ashmore & Knapp 1999; Zedeño & Bowser 2009; Ingold 2001), a terminologia arqueologia da paisagem figura os jargões clássicos das temáticas da arqueologia mais recentemente (Fleming 2006; Kormikiari 2014).
Ademais de ainda ser considerada uma área auxiliar ou secundaria (Morais 2011, 2012), segue a premissa de uma arqueologia de campo e a partir do manuscrito de Hoskins publicado originalmente em 1955 com o título The Making of the English Landscape (Hoskins 2013) vemos a temática propriamente em pauta, resultando a cunhagem do conceito a partir da publicação Landscape Archaeology: In introduction to fildword techniques in Post-Roman landscape em 1974 por Mick Aston e Trevor (1974) (Kormikiari 2014).
A arqueologia da paisagem toma distintas interpretações dependendo do autor, escola e período, não obstante, a temática deve ser entendida nas entrelinhas pois mesmo ocorrendo a ausência de sua configuração conceitual nos períodos iniciais da arqueologia, não se pode ignorar sua intrínseca presença no que diz respeito a interpretação dos lugares e as pessoas, adotando premissas da geografia e das ciências da terra, a paisagem se caracteriza como uma construção social (Santos 1994, 1996a, 1996b, 1997) e deve ser entendida dentro desta dinâmica.
. (Kormikiari 2014:5)Uma Arqueologia da Paisagem, ou do Lugar, impõe a interdisciplinaridade e o diálogo com perspectivas teóricas distintas. Mas o que são paisagens? e como a abordagem paisagística pode facilitar a compreensão dos processos históricos e culturais na Arqueologia? Neste sentido, a abordagem da paisagem é relevante para o objetivo da Arqueologia de explicar o passado humano por meio de sua habilidade em reconhecer e avaliar as relações interdependentes e dinâmicas que as pessoas mantêm com as dimensões física, social e cultural de seus meio-ambientes ao longo do tempo e do espaço
As paisagens, concebidas como lugares significativos, adaptados, biográficos e econômicos, exercem relações entre os seres humanos e o ambiente por intermédio da cultura material ou da materialidade, está é uma premissa básica para a compreensão do ser e estar na paisagem, da qual, é possível verificar e caracterizar sua assinatura (Gould 2009; De Barros 2021). Estes fenômenos são passíveis de identificação desde as primeiras formas de organização social, seja por meio da adaptação de ambientes específicos para a realização de manifestações rupestre (Finlayson & Warren 2018; Cummings, Jordan & Zvelebil 2014), por períodos de domesticação destas paisagens iniciadas por processos de sedentarizarão (Fleming 2006; Lau 2010; Zedeño 2008), até a ampla modificação destes meios, comuns as sociedades mais hierarquizadas e com processos de urbanização (Adams 1989; Zedeño & Bowser 2009), nos permite afirmar que a relação destes grupos com o meio vai além de uma questão econômica.
. (Schlanger 1992:97)In addition to agricultural fields and farming techniques, the Anasazi technological repertoire included domestic structures, storage facilities, agricultural processing facilities, field camps from which wild resources and raw materials were collected, and the tools needed for planting, harvesting, processing, and preparing a wide variety of foods. The Anasazi established at least two types of facilities on the landscape: habitation loci and limited activity loci. Previous work (Schlanger & Orcutt 1986) suggests that habitation loci were used as residential components and were the site of several features including domestic structures, substantial shelters for inhabitants and for storing goods, and facilities for carrying out personal maintenance activities including food preparation, storage, consumption, tool manufacture, tool repair, and other activities associated with living at a residential base
Quiçá, antes mesmo de conceber a arqueologia como ciência, este fenômeno tem sua aplicabilidade confirmada na história do pensamento arqueológico, do qual, temos o período dos colecionistas e dos gabinetes de curiosidades como uma primeira possibilidade da aplicação das questões da paisagem.
Mediante a organização de espaços e classificações materiais de acordo a uma incipiente tipologia, cronologia e origem geográfica, acorre uma reconstrução em muitos casos hipotética de uma paisagem controlada, e outras pouco mais realistas, com a reconstrução de espaços etnográficos contemporâneos a estas práticas (Impey & Macgregor 2001; Trigger 2004; Figueiredo e Vidal 2013).
Mesmo que seja uma premissa meramente ilustrativa, é possível identificar uma natural necessidade em associar os materiais a suas paisagens originais com o objetivo de consolidar possíveis narrativas para esta dinâmica, verificando uma aproximação a história da arte, que precisamente constitui as pinturas de paisagens ou landscape painting como gênero artístico na Europa por volta do século XVII (Cosgrove 1984; Gombrich 2019).
Seguindo esta sequência histórica, a prática arqueológica do século XVIII expande sua dimensão colecionista à grande busca de relíquias do passado, em muitos casos, interpretando e reinterpretando documentos clássicos para o descobrimento (evidencia) de cidades perdidas ou da reconstrução de dinâmicas históricas do passado mediante a busca e escavação de sítios mitológicos, nascendo nesta ocasião a arqueologia clássica, como é o caso das escavações em Herculano e Pompeia (Rodríguez 2011).
Neste sentido, estes primeiros trabalhos também apresentaram o conceito de paisagem atrelado a uma representação simbólica/mitológica e ambiental meramente descritiva dos seus locais de origem, uma vez más vemos a representação da historia da arte como eixo interpretativo.
Logo da breve descrição dos primeiros momentos da pratica arqueológica amadora ou incipiente, para o século XIX e XX, ocorre uma ampla consolidação da ciência arqueológica em relação as técnicas de campo e interpretações dos contextos arqueológicos (Wheeler 1955, 1979; Woolley 1940; Kenyon 1957, 1971). Nesta conjuntura, as ciências da terra passam a figurar o corpus teórico e metodológico da arqueologia, dando início a interdisciplinaridade da disciplina junto a outras ciências, em especial da geografia e da geologia (Vita-Finzi & Higgs 1970; Roper 1979).
No arcabouço do desenvolvimento da arqueologia histórico culturalista, temos os primeiros intentos de reconstrução das paisagens antigas e da designação da importância de nichos ambientais específicos que possibilitaram a consolidação dos primeiros grandes assentamentos humanos, para logo, as primeiras urbanizações e cidades.
Seguindo este programa interpretativo, se destacam os trabalhos de Childe (1950, 1973, 1978, 1981) com estudos sobre a pré-história europeia e do oriente médio mediante a adoção de noções marxista sobre questões de estruturas sociais e do materialismo histórico, consolidando-se importantes paradigmas, como as revoluções culturais (Neolítica e Urbana) que perpassando o entendimento das continuidades e mudanças culturais.
A questão de ambientes que configuraram o sucesso dessas revoluções, como a identificação de enclaves-chave para os desenvolvimentos de sociedades agrícolas (Zedeño & Bowser 2009) e questões incipientes de domesticações vegetais, mesmo não utilizando a terminologia das paisagens, é possível verificar indícios de questões de lugares persistentes, paisagens sagradas e lugares significativos em sua concepção econômica (Cosgrove 1984; Schlanger 1992; Trigger 2004).
Persistent places are places that were repeatedly used during long-term occupations of regions. They are neither strictly sites (that is, concentrations of cultural materials) nor simply features of a landscape. Instead, they represent the conjunction of particular human behaviors on a particular landscape. Persistent places fall into one or more of the following categories. First, a persistent place may have unique qualities that make it particularly suited for certain activities, practices, or behaviors... Second, a persistent place may be marked by certain features that serve to focus reoccupations. (Schlanger 1992:97)
É notável uma agenda acadêmica singular anglo-saxônica para os exemplos a pouco apresentados, o que não ausenta a presença de outros grupos europeus, ocorrendo um destaque as premissas da escola francesa neste escopo. Ainda no século XVIII, surge um interesse motivado pelas viagens de naturalistas as colônias, em especial as americanas, sobre aspectos tecnológicos, materiais e sociais destas de culturas contemporâneas em relação a materialidade europeia pretérita (Pelegrin 2020). A observação e descrição destas exógenas paisagens visitadas, geraram inquietações e premissas para o entendimento da relação desta beleza virgem natural como um condicionante as formas de vida ancestrais.
Avançando na cronologia de atuação da escola francesa, frente a adoção de um arcabouço teórico e metodológico da sociologia em especial junto aos trabalhos de Durkheim (1990, 1997) e Mauss (2003, 2008), no campo da arqueologia temos a adoção da peleoetnografia promovida por Leroi-Gourhan (1950, 1964a, 1964b, 1972), incorporando uma perspectiva técnica, comportamental, econômica, espacial e sociocultural as interpretações, ocasionando o desenvolvimento do conceito da chaîne opératoire.
Este conceito perpassa o entendimento da existência de uma intrínseca relação entre o comportamento humano e a cultura material, intermediada pelas dinâmicas ambientais, que mais do que fazer plano de fundo a estas dinâmicas, são responsáveis pela existência das mesmas, seguidas por outras compreensões no escopo das econômicas das paisagens, como o conceito économie du débitage et économie des matières premières proposto por Perlès (1980).
Ainda que não ocorra uma direta citação da terminologia das paisagens, para Leroi-Gourhan, não é possível compreender a dimensão cultural sem levar em consideração a relação das populações pretéritas com a paisagem/ambiente, como um delineador das histórias humanas de longa duração, onde as manifestações humanas são traduzidas pela materialidade, que por sua vez são produto do comportamento humano, organizadas dentro de um sitio e seu entorno que propiciam a consolidação de comportamentos técnicos sociais.
Os programas a pouco apresentados se tratam de iniciativas de investigadores europeus, e parte desta concepção acompanha o panorama social destes contextos, em grande parte colonialista e notavelmente particularista no que diz respeito ao outro (Dmitriev 2009; Hamilakis 2016; Silliman 2015).
Os eventos que procedem esta dinâmica estão associados ao final das colônias e a expansão econômica de novas potencias, como é o caso dos Estados Unidos, que passa a rivalizar os antigos centros de produção de conhecimento, quiçá com um olhar mais próximo as alteridades locais.
Acompanhando os grandes avanços da ciência com as teorias evolucionistas consolidadas por Darwin e com a valoração dos estudos etnográficos em diferentes partes do mundo, perguntas originadas nestes contextos começam a chamar a atenção e a arqueologia também segue esta premissa para formular seu arcabouço interpretativo (Zedeño 2008; Zedeño & Bowser 2009).
Orientados por esquemas antropológicos evolutivos sobre as paisagens (Morgan 1877; Tylor 1958; 1971; White 1959), acompanhando as premissas das ciências biológicas, novos esquemas evolutivos e sistemáticos foram aplicados a arqueologia, em grande parte com estudos realizados no continente americano com o enfoque na compreensão do desenvolvimento das sociedades em relação ao grau de desenvolvimento, fatores ambientais que condicionam ou impulsionam uma dita evolução cultural. Para estas premissas se destacam os conceitos de fronteiras culturais mediante o diagnóstico de ecótonos, complexos sociobiológicos e parâmetros ambientais que regulam as sociedades, com o exemplo mais clássico das limitações ambientais (paisagens inóspitas ou não favoráveis ao desenvolvimento de sociedades complexas, paisagens condicionantes !?) permeadas pelo determinismo ecológico e a ecologia cultural em especial aplicadas para as terras baixas amazônicas (Evans & Meggers 1968; Meggers 1942, 1971, 1990; Meggers & Evans 1957) e as terras baixas maias e Mesoamérica central (Armillas 1949, 1950; Sears 1951; Palerm 1954, 1955; Bullard 1960; Sanders 1962, 1965).
A arqueologia moderna foi delineada a partir esquemas neoevoluciostas, neopositivistas e em especial com a aplicação do modelo nomológico-dedutivo ou empiricista de Hempel (Araujo 2019), que é complementado pela adoção de novas tecnologias originadas no contexto pós segunda guerra mundial, datações absolutas, tecnologia espacial, analises biológicas e ambientais em edição a uma sistematização excessiva do registro arqueológico, dão origem a denominada New Archaeology, ou arqueologia processual, encabeçada por Lewis Binford.
A Nova Arqueologia surge como uma crítica aos anteriores modelos teóricos, em especial ao histórico culturalismo, assim como pelo seu grande afã de cada vez mais consolidar a arqueologia como uma ciência independente e relacionada a antropologia (Binford 1962, 1978, 1980, 1983), justificando a necessidade de sistematizar e transformar o registro arqueológico em dados passiveis de mensuração e modelação (Trigger 2004).
Neste escopo, surge um desdobramento sobre o conceito de paisagens arqueológicas e possivelmente este seja o primeiro de uma virada ontológica amplamente destrinchada pela arqueologia pós-processual. Segundo Zedeño e Bower (2009), no âmbito do positivismo que acompanhou o advento da New Archaeology, alguns aspectos das dinâmicas da natureza humana foram negligenciados, onde muitas das premissas propostas estão elencadas ao programa de atuação da geografia positivista, mais preocupada em utilizar ferramentas quantitativas e analises espaciais em vez da relação das paisagens culturais.
. (Zedeño & Bower 2009:2)Although human ecology and cultural geography have had a great impact on anthropological theory since the 1930s (Steward 1955; Steward and Seltzer 1938; Wedel 1941, 1953), the positivism that accompanied the advent of the New Archaeology initially bypassed numerous aspects of human-nature dynamics for those most likely to create a conspicuous material record (Binford 1962). At that time, positivist geographers who favored quantitative tools of spatial analysis over the not-so-easily delimited and measured cultural landscapes also made important inroads in archaeological research
Binford com a publicação do artigo The Archaeology of place (1982) foi o pioneiro a propor uma interpretação do conceito de lugar, argumentando que, até que voltemos a proporcionar um séria atenção para o projeto de métodos confiáveis para monitorar as condições de interesse do passado (reconstruções paleoambientais), não seremos capazes de abordar questões fundamentais por meio da investigação de vestígios arqueológicos, sendo necessário voltar a atenção analítica para o papel dos diferentes lugares na organização dos sistemas culturais (Zedeño & Bowser 2009).
Com a premissa de novos olhares ao espaço habitado, de maneira geral a arqueologia processual permitiu uma melhor compreensão da inserção e interação dos seres humanos nas paisagens, com a preposição de que os lugares são representativos e mais do que condicionar, proporcionam novas dinâmicas nos sistemas culturais, delineando e compondo respostas ao comportamento humano mediante a materialidade, a modificação e adaptação na paisagem. É importante ressaltar que o caráter de uma ciência dura (Hamilakis 2016) que implica dados quantitativos, possivelmente limitou de maneira atenuante a consolidação de novas perspectivas para a relação do comportamento humano e o meio.
No âmbito da compreensão dos lugares, Basso (1996) tece considerações importantes para esta virada ontológica, ao inferir a intrínseca relação entre a identidade, trajetória, memória e noção de pátria atribuída aos lugares, onde a história humana, quanto ambiental e material, reside no conhecimento oriundo do viver a história nestes lugares (Zedeño 2008; Zedeño & Bowser 2009).
Neste sentido, é na arqueologia pós-processual que o conceito de paisagem ganha corpo, pratica e discussão, acarretada pela premissa de um século XX e XXI permeado por câmbios na forma de ver o outro (acompanhando o desenvolvimento da ciência antropológica e sua relação intrínseca ao fortalecimento epistemológico da ciência arqueologia, em casos entendida como uma ciência em comum).
Estes novos olhares permitem uma melhor noção do colonialismo em todas suas facetas, e a necessidade de entender as dinâmicas dos fenômenos do comportamento humano mediante a uma interdisciplinaridade mais holística, com uma certa crítica ao núcleo estático e duro constituído e defendido pela arqueologia processual (Trigger 2004).
Importantes considerações são tecidas neste contexto, partindo da busca de definir uma ampla agenda intelectual e política neste escopo, trazendo em pauta a necessidade de que o arqueólogo seja mais do que um investigador distante de seu objetivo de estudo, mas que tenha noção da necessidade de agir como um sujeito inerente as dinâmicas e problemáticas de seu objeto de estudo. Como exemplo destas praticas temos a atuação junto as comunidades tradicionais/indígenas ou que preservam os saberes ancestrais em seu cotidiano, minorias étnicas e outras que foram negligenciadas até então (Colwell-Chanthaphonh 2009; Ingold 2001; Zedeño & Bowser 2009).
Este programa mais holístico entorno as paisagens e lugares se preocupa em descrever e explicar como determinados lugares são compostos de elementos-chaves para a compreensão de como os espaços sociais são construídos, cambiados e preservados, incorporando facetas biológicas, topográficas, geopolíticas, ideológicas, cosmológicas, de memórias e mnemônicas do lugar, compreensões sobra a dinâmica das redes entre os lugares, lugares e as paisagens e estes e por fim representam a intrínseca relação das paisagens e a consolidação do comportamento humano (Zedeño & Bowser 2009).
Um importe feito ponderado pela virada ontológica sobre a teoria arqueológica no que diz respeito as paisagens correspondem a noção de colonialismo e do pós-colonialismo nos estudos de grupos pretéritos e recentes. Estas premissas se encontram atreladas as novas concepções de paisagem (Cosgrove 1984; Colwell-Chanthaphonh 2009; Hamilakis 2016; Ingold 2001; Zedeño & Bowser 2009), gerando um importante e inovador programa conceitual, uma miscelânea de novas perspectivas teóricas sobre os lugares persistentes (Shcalanger 2012), lugares significativos (Zedeño 2008; Zedeño & Bowser 2009), lugar, memória e metáfora (Zedeño & Bowser 2009), espirito dos lugares (Driessen 2010), da temporalidade das paisagens e a percepção do meio ambiente (Ingold 2001), paisagens políticas (Smith 2011), uma arqueologia da soberania que reflete a organização dos grupos humanos na paisagem (Smith 2011), questões de memória, mobilidade e do trabalho colaborativo nas paisagens herdadas ou roubadas (Silva & Noelli 2015).
ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM NO CONTEXTO BRASILEIRO
Para a arqueologia brasileira, o tema das paisagens não foi negligenciado, sendo necessário levar em consideração que grande parte das iniciativas teóricas propostas para o contexto brasileiro, em um primeiro momento, seja para a formação de novos profissionais ou da realização de projetos regionais, é oriunda de adaptações de premissas teóricas e de métodos de escolas europeias (Inglaterra e França) e estadunidenses, com grande expressão da participação da escola francesa e da escola norte americana em especial (Barreto 2000).
Este panorama de formação deve ser visto com bons olhos, já que esta múltipla formação permite aos profissionais da arqueologia um leque de opções metodológicas e conceituais que melhor pode se adaptar ao contexto a ser estudado.
Um consenso no que diz respeito a alteridade do registro arqueológico americano, em especial o brasileiro, gira em tordo da consolidação de novas possibilidades de entender as paisagens e suas implicações sobre o comportamento humano e a materialidade, o que possibilitou uma ampla quantidade de estudos que propõem novas perspectivas, como é o caso dos estudos realizados na Amazônia brasileira (Brochado 1980, 1984; Heckenberger 1996; Neves 2020; Roosevelt 1980, 1991), proporcionando novas interpretações sobre a relação das populações indígenas pré-coloniais e pós-coloniais com o lugar, em um complexo meio de domesticação, adaptação, manejo e modificação das paisagens.
Na última década, projetos regionais proporcionam uma aproximação e reconstrução dos modos de vida e das dinâmicas socioculturais dos povos indígenas do Brasil em período pré-colonial, colonial e pós-colonial (seja por intermédio do estudo da cultura material e seus contextos ou mediante a análise dos registros etnográficos e a atuação do trabalho etnográfico de campo ou etnoarqueológico) em relação aos diferentes biomas e paisagens do país.
Destacamos a atuação dos trabalhos do Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (LAEP/CEGEO/ICT/UFVJM), coordenado pelo Dr. Marcelo Fagundes, (Fagundes, Kuchenbecker, Vasconcelos & Gonzaga 2020).
Territorialidades ameríndias no Alto Vale do Itajai, com a preposição de um olhar a partir da Arqueologia, da Ecologia e da Paleontologia, coordenados por Juliana Machado, Lucas Bueno, Nivaldo Peroni e Patricia Hadler e o Projeto Paisagens Jê Meridionais: ecologia, história e poder numa paisagem transicional durante o Holoceno tardio, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, coordenado pelo Prof. Dr. Paulo Antônio Dantas de Blasis (Corteletti et al. 2014).
Também temos outros projetos que por mais que não tenham a cunhagem da terminologia das paisagens em seu título principal, aplicam diferentes abordagens sobre as paisagens que dão corpo às interpretações dos registros, contextos, dinâmica, e práticas arqueológicas, como é o caso do projeto arqueológico Quebra Anzol, Minas Gerais, MAE-USP, coordenado pela Professora Dra. Marcia Angelina Alves desde a década de 80 (Alves 2009; De Barros 2018).
Outra exitosa propostas diz respeito a realização da arqueologia colaborativa, a interpretação de contextos etnográficos e sua relação com os lugares do passado, com destaque aos trabalho de Silva (2008, 2013) e Silva e Noelli (2015) junto aos grupos Asurini do Xingu, onde foi possível estabelecer complexas reconstruções históricas destes grupos, involucrando momentos de transformações sociais, tecnologia ancestrais, deslocamentos, conflitos e reminiscências com esta história de longa duração, onde segundo Silva:
. (Silva 2013:31)No entanto, desde 1982, ocorreram muitas mudanças na chamada arqueologia do lugar. Na atualidade, vários autores se dedicam a estudar os lugares para além de seus significados em termos de organização e logística sócioeconômica. Os lugares assim como as paisagens passaram a ser entendidos como significativos, adjetivados de várias maneiras (p.ex. sagrados, perigosos, tradicionais, culturais) e estudados em termos de suas biografias, significados metafóricos e metonímicos, políticas, lógicas, redes, transformações e persistências
Esta nova forma de lidar com as paisagens entorno as problemáticas e alteridades locais, possivelmente também serviu de base para a aplicação de tais conceitos em contextos exógenos, como é o caso da aplicação teórica e metodológica das paisagens para a arqueologia clássica (Kormikiari 2014), da Mesoamérica (Arcuri 2017; França 2007, 2009, 2010) e dos Andes (Arcuri 2009, 2012), desenvolvida desde a distância ou com visitas e trabalhos arqueológicos de campo e analises de cultura material in situ esporádicos.
CONCLUSÕES
É digno de ressalva que este ensaio apresenta suas limitações em relação ao estilo da publicação, do espaço destinado e da quantidade de autores descritos, assim como outras importantes escolas e epistemologias da teoria arqueológica que tampouco foram citadas, como a arqueologia soviética, a arqueologia alemã e outros campos de produção do conhecimento secundários. Dentre os campos secundários ocorre destaque a produção de conhecimento do oriente de modo geral e da Península Ibérica, sendo necessário destacar a este último contexto a extensa produção relacionada as paisagens propostas por Criado-Boado (1991, 1995, 1999), com premissas da geografia e miradas holísticas da ciência entendendo a paisagem desde uma realidade empírica, sociológica e culturalista (1991, 1995) que deve ser analisada desde a preposição e uso de métodos de análise da paisagem (1995, 1999), sem embargo, seu contexto de difusão e uso está restrito a escala local e regional de países com cercania a realidade linguística do autor, com presença diminuta no contexto brasileiro.
Com esta premissa, optamos pelo recorde às correntes mais reproduzidas a nível mundial, e aquelas que seguem sendo difundidas no Brasil, e que sem dúvida, foram responsáveis pela formatação do lócus de produção do conhecimento atual.
Não obstante foi possível ponderar alguns delineamentos, em primeiro lugar, ocorre uma linearidade em relação a utilização do conceito da arqueologia da paisagem, que nasce como uma premissa meramente ilustrativa e como campo da reconstrução da história simbólica e mitológica de ocupações pretéritas, característica dos primeiros momentos da arqueologia.
Estes inícios são sucedidos por uma adaptação de modelos geográficos e uma percepção das paisagens em relação a manifestação material e da organização humana, sendo possível identificar momentos de valoração dos ambientes e a identificação das relações econômicas entre seres humanos e o ecossistema e de enclaves ambientais que mesclam biografias locais e comportamento social.
. (Silva 2013:31)As pessoas criam lugares através de suas experiências com o meio (tangível e intangível), dando significados a eles e produzindo conhecimento sobre os mesmos. Os lugares tem uma dimensão individual e social, bem como agência para modelar e influenciar as ações das pessoas. Os lugares são irremediavelmente ligados à história e à memória das pessoas e, por isso, podem também assumir dimensões políticas e identitárias
Consecutivamente, temos um amplo desenvolvimento da disciplina na arqueologia moderna, voltada mais para a quantificação e caracterização ecológica das paisagens por parte dos processualistas, acompanhada por uma virada ontológica no que diz respeito a atuação de investigadores pós-processuais, onde o lugar é abordado em uma miscelânea de perspectivas, incluído a arqueologia comportamental, antropologia, cosmologia e fenomenologia, teoria social contemporânea, geografia, história, etnohistória e arquitetura (Zedeño & Bowser 2009).
A partir desta conjectura, não é plausível seguir com a prática arqueológica sem levar em consideração a questão das paisagens e dos lugares, pois independente do contexto, os fenômenos comportamentais invólucros a produção da materialidade ocorrem em um espaço/lugar, e este lugar exerce uma agencia direta em relação a atividade humana.
Em contrapartida, é plausível afirmar que independente da premissa, escola e conceito, a temática das paisagens deve sempre ser levada em consideração nas interpretações da ciência arqueológica, ademais da falta de diálogo entre as diferentes escolas, fenômeno este que sem dúvida dificulta o avanço da pratica das paisagens e lugares, e que no caso brasileiro e da américa latina em geral, ocasionou uma melhor pratica dada a convivência entre diferentes epistemologias no que diz respeito a interpretação da alteridade local e dos avanços da arqueologia